Maria Gabriela de Sá
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« em: Novembro 25, 2022, 02:32:31 » |
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“Frei Luís de Sousa versão atualizada ÚLTIMO ATO Diz Telmo, para Madalena sentada na secretária – A senhora nem parece quem era. Já não borda, mal lê poesia, não faz crochet. Agora é só computador, facebook e telemóvel. – Os tempos mudaram… É a modernidade a falar-me, já que com quem eu queria falar não falo… – Para quem escreve a minha ama tantas cartas de amor? – Para todo mundo e ninguém! E olha que andas a ficar demasiado curioso para meu gosto! – Desculpe a insistência. Devo obediência a meu amo, a D. Manuel, tenho de cuidar do que é dele. – Ai Telmo, Telmo, antigamente eras meu confidente, agora mais pareces um censor. Esquece lá as cartas de amor, vai cuidar do teu serviço. Vai ver se as criadas andam cumpridoras e não exorbitam as suas competências, se os cavalos têm feno na manjedoura e água no bebedouro. Não te esqueças de conferir se há baratas na despensa ou gorgulho no arroz. – Senhora dona Madalena, por quem sois! Isso dos poemas e das cartas de amor preocupa-me. Para D. Manuel não são, que todos os dias ele se faz presente nesta casa e na sua cama, e, além do mais, a ama. – Estás uma verdadeira sarna! Se queres saber, o meu coração sempre pertenceu a D. João, quer tu e eu queiramos ou não! – Então por que se casou com D. Manuel… Foi só por a menina Maria precisar de um pai e ele ter algum “pastel”? – Assim eu pensava na altura… Vê-se mesmo que andas desatualizado. Deves ler mais livros, revistas e jornais. Agora todo o mundo é divorciado. Eu deveria era ter feito como a Penélope, esperar, fazer, desfazer e ver no que a coisa dava…Estou bem arrependida, se queres que te diga! – Mas, Dom João, se existir e estiver vivo, não quer nada consigo. Se assim não fosse, já teria apanhado um vapor e regressado há muito aos braços do seu amor. E, mesmo que viva, deve ser já muito velho, louco e barbudo. – Ai Telmo, Telmo! Parece que nem me conheces desde há tanto tempo! Não te lembras que os homens mais velhos sempre foram vidrados em mim? Eu com ele ganhei jeito, gostei de o sentir junto ao peito, onde as suas marcas ainda se aninham como aves do paraíso, para a perda total do meu juízo. – Dona Madalena! Isso é quase blasfémia. Se ele estivesse mesmo vivo e entrasse agora por aquela porta, a senhora, de um segundo para o outro, transformava-se de uma honrada dama casada numa bígama! – Dizes isso como se eu fosse um bivalve da Ria de Aveiro? Estás a ser perverso! Antigamente eras todo Joanino, e, de repente, tornaste-te num Manuelino convicto. Nunca ouviste falar da nulidade de um casamento? (há vários sentidos para a nulidade de um casamento, mas aqui é mesmo o do Código Civil…). – Pior um pouco! Então a senhora, para não dizer prostituta, seria, no mínimo, uma amancebada, uma amante. Que horror! Isso já é ser infiel a D. Manuel. – Olha, cala-te e vai abrir a porta! Estão a bater. Entra D. Manuel e um Romeiro, um velho barbudo, que parece andar há muito na demanda do Santo Graal. Mas, isso sabe-o bem D. Manuel, é D. João de Portugal. O coração de Madalena pula de alegria. Sempre pode fazer trancinhas nas barbas do seu amor recém-regressado e ver se ele ainda cabe nos ninhos do seu peito esperançado. Ordena D. Manuel, o dono da casa de pleno direito e agora ambíguo quanto ao seu estado: – Sai Telmo. Por favor. Vamos resolver as coisas a três, só de uma vez. E eis que Madalena, já de pé perto da sua cadeira no computador, em que escreve poemas e cartas de amor, diz – Entre três ou dois, quando o caso está malparado só um resolve, na verdade, o seu estado. Neste caso sou eu. Fico com D. João de Portugal, porque ele é o meu verdadeiro amado. Mas agora é melhor que ele vá tomar um banho e ficar relaxado… Ordena a Telmo, recém-entrado na sala: – Vai buscar o barbeiro… Eu trato do perfume, dos sais, do conforto e do calor, reingressando de vez no coração do meu amor. FIM Gabriela Sá
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