Maria Gabriela de Sá
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« em: Março 14, 2023, 17:45:17 » |
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CONTOS DO SÉCUXO XXI – O PENSAMENTO
Chamo-me Andrómeda e hoje vou sair de casa, mas quero ir leve como uma pluma. Só eu sem memórias, sem angústias, alegrias ou tristezas. Não sei ainda o que irei fazer lá fora, na rua, se o meu destino é hoje um jardim e as ervas daninhas a arrancar uma tarefa à minha espera. Quero um trabalho simples, que não exija pensar, só mãos, delicadeza para não arrancar às plantas mais do que o joio, olhos de açúcar e mãos de seda para não danificar seja o que for. Vou deixar o pensamento em casa, numa gaveta, num gavetão, num armário escuro onde ele não possa ver a luz, sequer respirar. Não, um armário não chega. O meu pensamento é vadio, expande-se à menor fagulha, é um cavalo de corrida sem freio nos dentes, vai aonde não deve, encalha em sítios de onde não quer sair. Às vezes troca a luminosidade pela sombra, sem atingir a penumbra que se segue a uma e a outra tomando-as num novo ponto de partida. Estou numa esplanada à beira-mar, sem fazer nada, só a olhar o oceano, pensamento em casa a espernear no armário do aspirador complicado, o que exige um curso de descodificação para ser entendido. Bem vistas as coisas, o meu aspirador é como eu, ou eu sou como o aspirador, e oxalá o meu pensamento não produza lixo igual ao que ele come. Talvez o aspirador e o meu pensamento estejam ambos a conversar, a falar sobre a dona e seus paradoxos, o pensamento a dar uma lição qualquer ao aspirador. Ando há tempos a desejar que o meu pensamento se quede nos limites do meu cérebro, que não se sinta como se estivesse permanentemente a dar uma palestra ao Universo, talvez para que todos lhe reconheçam a ignorância. Às vezes faz isso, cala-se…O que, sendo pior para mim, que me moo com os seus próprios enzimas, é melhor para o Universo, onde o meu pensamento transformaria algo ou alguém, ainda que numa infimíssima parte, como um espiro em Portugal causador de uma tempestade no Pacífico. O mar. O mar é bonito e acalma. Mas hoje eu deixei o pensamento em casa e não sei por que é o mar tão bonito e me deixa tão calma. Também não sei por que me parecem hoje as pessoas que andam por aqui flores vivas, anjos que desceram à terra para um passeio e alguns vestem mesmo roupa comprada nos chineses. Digo isto sem desprimor. Digo por estar sem aqui sem o pensamento, que ficou em casa a criticar a dona com o aspirador. É ele quem repara em todos os pormenores, os engrandece ou distorce. E é por andar sem o meu criador, o deus pensamento, que aquele senhor, em cadeira de rodas empurrada talvez pela mulher, me inspira uma enorme sensação de amor. Que maravilhoso ver aquela menina de Kispo cor-de-rosa a brincar com o cão! Como se o mundo estivesse todo aqui para ela desfrutar e o amanhã fosse sempre o hoje... Um lugar onde ela parece tão feliz a brincar com o seu melhor amigo. Ah, e os meus amores, que bela recordação… E os amores dos outros nos seus contrastes. Mas o que é que me está acontecer? Não sei que lugar é este aqui à minha frente… Não sei o que sinto ao olhá-lo, não sei o que é olhar, não sei quem são estas pessoas, não sei o que são anjos nem lojas de chineses. Não sei o que é um aspirador e para que serve um aspirador. Não sei para que sirvo eu e talvez não sirva para nada. Nada sou eu, e não sei por que estou assim e me sinto ninguém… Neste instante, lembro-me vagamente de ter deixado algo em casa, uma coisa, às vezes pequena, outras vezes grande, fechada não sei onde. Há pouco só tinha talvez pensamentos felizes, agora sofro por não os ter, não ter memória, não saber que nome tem aquela massa de água aqui à minha frente...Meu Deus que vazio! É melhor morrer… Não sei mesmo o que fazer, se eu pudesse recuperar o meu pensamento, as minhas memórias, os raciocínios complexos da vida simples que sempre tive. Volta, pensamento, que eu não sei se conseguiria chegar a casa sem ti. Talvez me desorientasse, me perdesse no emaranhado das ruas, nos véus onde a minha mente se embrulhou e está agora sem capacidade de o romper. – Estou aqui Sua ingrata! Deixaste-me trancado no armário, mas eu saí e o aspirador ficou a falar sozinho. Eu sou a tua unha, às vezes unha encravada, tu és a minha carne. Não podemos viver um sem o outro. Se vier, ainda não é a hora do Alzheimer. Tens de te aceitar como és, de pensamento doido e vadio. Mesmo assim, vê quantas pessoas te amam como és? Vai, abre o teu livro e lê: “A História só começa no ponto onde as coisas dão para o torto….” In “O País das Àguas” de Graham Swift. Gabriela Sá
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