Maria Gabriela de Sá
|
|
« em: Abril 05, 2023, 16:16:04 » |
|
Sou a número 117 dos correios e do atendimento geral para levantar a minha carta registada. Estou sentada no único banco que há na estação, agora também banco. Estou distraÃda, como sempre, a pensar com os meus botões nem sei o quê. Apesar disso, vejo bem a mulher que passa à minha frente e se encosta a um falso balcão a aguardar vez, que será anunciada pelo painel dividido de A a D por itens. A mulher é já velha, mas isso também eu sou. Obviamente sei a minha idade mas não tenho de saber a dela. Chega neste meio tempo um homem acompanhado por uma mulher. É também idoso mas não sei o quanto e, tanto quanto me parece, pinta o cabelo de negro para parecer mais jovem. E eu sentada a pensar com os meus botões. O homem, algo impaciente, como a fila ainda está longe de lhe dar vez para atendimento, começa a reclamar e a arrogar-se o direito que a idade lhe dá para ser atendido antes de quaisquer outras pessoas. A senhora encostada ao balcão fingido reage. – Se você tem oitenta eu tenho noventa e estou aqui a aguardar a minha vez em pé como você tem de aguardar a sua. – Mas você não tem pressa e eu tenho. – Eu também tenho em casa muito que fazer enquanto você está para aà a namorar – diz em alta voz. Agora que os bancos são chamados à liça, eu, sentada num, olho para a senhora que diz ter noventa anos e dou-lhe o meu lugar de mulher com ar de miúda a que me achava com direito antes de ouvir mencionar duas outras idades ali presentes e com uma hierarquia superior e a merecer assento num banco único. Imediatamente cedo o meu lugar, a um ou a outro, eles a rezingar como dois tontos de qualquer idade num dia de namoro azedo. – Venha para aqui Nada. A conversa, ainda que áspera, é bem melhor do que um banco para qualquer deles se sentar, se calhar por um ou outro não terem assim tantas hipóteses de o fazer, envoltos talvez numa solidão que os deixará assim resmungões. E eu que perdi o lugar que nenhum deles quis para terceiros oportunistas! – 117. É o meu número. E abstraio-me de uma conversa inútil, uma cacofonia para ouvidos sensÃveis como estão hoje os meus. Se um dia tiver oitenta ou noventa anos, espero não ser uma grandessÃssima chata, sempre a reclamar de tudo e de todos e a evocar episódios do tempo do arroz de quinze. Sobretudo, espero não ter uma carta registada para levantar nos correios e uma convocatória para a sempre tão querida reunião de condomÃnio.
|