jcbrito
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« em: Maio 08, 2008, 13:58:05 » |
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Versículo 4: o sal
Caixas e mais caixas. Muitas caixas. Caixotes com números. De madeira, claro. Cheias de cenouras. A única coisa que havia para comer, naquele compartimento patibular. A morte ali ao lado, a espreitar, a sorrir, desdenhosa, aguardando, serena, a presa. Sem pressas, tirando partido do sofrimento e comprazendo-se com cada segundo. Tosse. Constipação. Pneumonia. Desidratação. Escorbuto. Humidade. Mas alguém com quem partilhar a dor! A companhia que lhe faltava, nesse momento, o lenitivo de quem sabe que sabe melhor morrer acompanhado. Calem-se! Parem com esses gritos lancinantes. Parem de encher a boca com o meu nome e com essa lengalenga abominável. Pai-nosso-que-estais-no-céu, pra que vos quero? E tu, desdentada, de vestido negro, onde não está roto, vai carpir as mágoas do teu marido, que, se não está morto, azar o dele por te aturar, vaca gorda, velha e feia. E bafo de onça! Bem falta te fazia a cenoura para te calar. Tivesse eu uma cenoura para vos calar a todos, horda de vagabundos. Ah, o silêncio. Finalmente. As minhas preces foram ouvidas. Acabou-se o pranto, o riso. Só um suave tilintar distante de uma sineta. Melodioso. Adormeço. E uma voz grave, profunda, entoando uma oração. Paz à minha alma. Já não era sem tempo. Paz aos meus pensamentos, que falecer ainda é destino não confirmado ao meu corpo, ora estático. Agradeço a quem me trouxe até aqui. Deixem-me, então, pensar, amigos. O velho improvisava um fogareiro com um dos caixotes. Cozia cenouras. Tentava fazer sopa. De cenouras, claro, porque mais não havia para deitar lá para dentro. A primeira vez que comi, depois de tanto tempo. Que bom, acondicionado com um pouco de água do mar para salgar o caldo. Sopa sem sal, dizia e bem o pregador aos cafres, é coisa do demo. Vós sois o sal da terra. Sopa abençoada pela comunhão de quem se quer bem. Comíamos, os dois, desfrutando do momento, em silêncio. Depois, o velho, à falta de matéria mais apropriada, arrancava um tufo dos seus cabelos brancos e colocava-o no cachimbo, saciando, assim, o vício, que, dizia, ritualizava desde o nascimento do filho. Enquanto fumava, conversávamos sobre coisas sem grande importância. Sobre como nos iríamos divertir quando saíssemos. Quando saíssemos dali, daquele pardieiro húmido e frio. Mas onde era exactamente ali? Tenho de me lembrar. E quem era o velho que cozinhava cenouras e fumava o próprio cabelo em vez de, muito mais poeticamente, ler romances de amor, hábito que, para além de ser mais saudável, teria inegavelmente mais interesse, literariamente falando, claro. Ei! Cuidado! Que eu sou de pau, mas também tenho sentimentos. Mas… por que me amarram? Por que me atam, com grossas cordas ao meu caixão? E por que me viram, quase na vertical? Ah, as cordas eram para eu não cair. Bem pensado, até. Não está mal visto, não senhor, e agora, sim, posso ver tudo e viver para contar. É noite cerrada, com muito frio e vento, a avaliar pelo que a imensa mole humana que está à frente tem vestido. Mas não chove. Felizmente. Sempre detestei a chuva, que me fazia um mal terrível. Vestem de preto, trazem velas na mão, com a chama acesa, protegida pela palma da mão. O vento vem de trás, dos lados do mar, gélido e húmido, enrolado em silêncio de espuma salgada. — Papá, como vamos conseguir fugir? O velho fazia o seu papel, o papel que os pais têm de fazer diante dos filhos. Manter a serenidade e aparentar uma segurança que, de tão fingida, acabava mesmo por acontecer. Os seus olhos já não tinham o brilho de tempos idos, mas queriam voltar a ver o azul do céu. As suas mãos queriam outra vez enlaçar-se com a madeira, apesar de curvas e calejadas. Trabalhá-la com a mestria de quem carpintou desde menino. Quando mais uma pequena vaga lhe molhou os sapatos inundados, levantou-se e decidiu que a hora tinha chegado. Até mesmo porque as cenouras estavam a acabar e não haveria alimento para mais de dois ou três dias. Pegou-me pela mão e, com a expressão mais confiante que o pânico e a insegurança lho permitiram, disse: — Estás preparado? Sim, claro que estava. Preparado para ir até ao fim do mundo para fugir daquele fim do mundo. Em relação à fuga propriamente dita, as imagens que João conseguira reavivar eram demasiado ténues e nebulosas para as reproduzir, mas recordava a chegada a terra firme, a uma praia de areia branca onde o sol se punha do lado do mar onde, por vezes, regressava, na tentativa de rever a baleia onde os dois tinham estado cativos. Do pai, nunca mais soube nada. Ter-se-ia afogado, certamente, o bom do mestre Gepeto, que não tivera a sorte de ser feito de madeira para poder boiar durante milhas e milhas de água oceânica e para resistir a dentadas dos tubarões-martelo, que pareciam ter faro pelo carvalho e ainda lhe levaram três ou quatro narizes. Nada, porém, que uma boa mentira não tivesse resolvido. E mentiras era com ele, ó se era. A única coisa que lamentava era ter passado a humilhação da lingerie feminina, facto que nunca, por muitos anos que vivesse, e não parecia ser esse absolutamente o caso, haveria de perdoar ao ogre verde. Adorado pelas crianças, mas que, na realidade, não é quem se pinta. Melhor faria a Fiona se casasse com o príncipe, que também não era boa rês, mas nunca lhe lançou fama de paneleiro. Tudo menos isso. Está bem que o seu primeiro nome era um bocado amaricado. Por isso, decidiu, após o escândalo do filme, mudar de nome e passar a ser conhecido por simplesmente… João. A partir daí, procurou iniciar uma nova vida, uma vida normal. Arrendou umas águas furtadas perto do centro da cidade, lia o jornal religiosamente de manhã, tirava nota dos empregos que, eventualmente, pudessem interessar e respondia aos anúncios, sempre na expectativa de ser chamado. Mas não é fácil para quem é de madeira fazer vida. Aos poucos, começava a sentir-se discriminado e a perder a esperança. Valeu-lhe o Torcato, do Teatro de Marionetas do Porto, que lhe deitou a mão e lhe deu trabalho em duas ou três peças para crianças. Foi sol de pouca dura. A sala estava quase sempre às moscas e a companhia teve de fechar, lançando-o para as filas do Centro de Emprego. Deixou de pagar a renda e a senhoria não teve compaixão. Rumou para os subúrbios e deu-se com gente de mau porte. Tentou meter-se na droga, mas a droga não se metia nele. Discutia, à razão da facada, os cantos mais aconchegados debaixo das pontes e das soleiras dos prédios sem segurança privada. Abateu-se na tentação da vida fácil com senhoras idosas, metendo o nariz onde era chamado, mentindo e dizendo a verdade, rápida e alternadamente, à voz de comando da mátria. (cont.)
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