marcopintoc
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« em: Junho 19, 2008, 17:58:08 » |
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Os vultos lúgubres e andrajosos que vagueavam em redor da barraca agitaram-se momentaneamente iluminados pelos faróis que anunciavam a chegada do potente carro desportivo. Os largos pneus respingaram um pouco mais de lama e água para as já imundas vestes; esse facto não pareceu incomodar sobremaneira os drogados. Um deles, provavelmente menos acostumado com as regras do local, emitiu um sonoro -“Eehhh! Ganda Bomba!!”- que tanto podia ser dirigido ao resplandecente Porsche Carrera GT como ao metro e setenta e cinco pleno de pernas e curvas que saiu do lugar do pendura. Tal atrevimento foi, de imediato, censurado por um dos dois homens de aspecto mais sóbrio e limpo que se encontravam junto à porta do casebre: - Atina-te pá . São clientes – A “shotgun” que empunhava era um argumento de peso e o trémulo e pálido ser que profira o impropério efectuou uma estratégica retirada por uma ruela mal iluminada donde provinha um intenso odor a urina. De dentro do Porsche surgiu a figura do condutor. Tal como a elegante máquina destoava sobremaneira com toda a ambiência do local. O “blazer” de botões dourados, a imaculada camisa de caro linho, as calças cremes e os inevitáveis mocassins indicavam que não era fauna residente do bairro de consumo. Um azul no olhar, farta cabeleira loura moldada no formato dos “playboys” da Quinta da Marinha; o rosto espelhava a condição social, a arrogância da percepção da mesma e uma imensa, quase irrefreável, vontade de chafurdar as abastadas narinas no produto de altíssima qualidade que ali, no Zé da Neve , se transaccionava. - Madalena , Mexa-se mais depressa por favor – A ordem emitida por Bernardo ignorava a dificuldade da sua anoréxica companheira em equilibrar os saltos na camada de lama , chuva e mijo que cobria o acesso à barraca. Um dos porteiros encarou o casal tóxico-dependente de classe alta e cedeu passagem. O abrir da porta foi acompanhado por um olhar guloso, ao qual se juntou o do seu companheiro de canos serrados, que apreciava o bambolear apressado e o fio dental exposto pela transparência do curto vestido negro que Madalena envergava. No interior uma amálgama de alta tecnologia doméstica, mantas da feira de Carcavelos, sofás de luxo , iluminações decorativas de loja chinesa. Sobre a mesa baixa um largo espelho onde se erguia um pequeno Evereste “made in Colômbia” ; na parede um nicho albergava uma imagem de Nossa Senhora de Fátima . Ocultos pelas sombras, em dois cantos da divisão, mais dois homens de aspecto duro , armas de alto calibre nos coldres de sovaco. No centro da sala, imponente no seu cadeirão, estava o traficante. Zé da Neve; olhos verdes ciganos cercados por uma alva cabeleira. Branca também era a espessa barba que cobria a quase totalidade do rosto ocultando os lábios e as cesuras de lutas passadas. Em contraste, o negro era a cor única de toda a indumentaria do vendedor de estupefacientes. Uma vez, um outro cliente, perguntara se tal negrume era cor de luto. Suspirando, o “dealer “ entregara a meia grama e clarificara: - Um cigano está sempre de luto. Zé da Neve apresentava um ar profundamente tranquilo. O cintilar e a vivacidade dos seus olhos , o tom de pele sadio eram provas irrefutáveis de que não consumia os produtos que traficava. Perante a chegada do distinto casal estendeu o braço, onde pendia uma grossa pulseira do mais puro ouro e um reluzente e falso “Rolex” , e convidou: - Minha senhora , faça o favor de se sentar na modesta casa do Zé – acompanhou ,com um olhar divertido ,o movimento e a quase chegada à cintura da curta saia que envergava Madalena; posteriormente dirigiu-se a Bernardo – O amigo sente-se também. Então o que é que vai ser hoje? Um risinho nervoso saiu dos lábios carnudos de Madalena acompanhado por um esbugalhar dos enormes e necessitados olhos castanhos. Zé da Neve pressentiu negociata da grande e imediatamente empurrou em direcção da bela mulher uma generosa linha que ele próprio separou do imenso monte de cocaína. Acendeu um dos ecrãs de plasma e ,com um gesto rude do comando remoto ,apontou a Madalena para onde devia focar a sua atenção. Fazia negócios com homens , neste caso com Bernardo ,que sentado na poltrona à sua direita não cessava de se agitar sobre o cabedal castanho. Era óbvio o seu estado inquieto, Zé da Neve não apreciava pressas e espicaçou: - Então amigo? Parece que o sofá até tem agulhas. Olhe que é Divani e Divani , quase de certeza igualzinho aos que tem lá em casa dos seus paizinhos – emitiu uma gargalhada batendo com força no braço do cadeirão que ocupava – Estes também vieram de Cascais. Mas não foi do Shopping . A graçola foi acompanhada pelo grasnar dos capangas do Zé da Neve. Um olhar mais áspero do cigano trouxe de novo o silêncio à divisão. Insistiu: - Então amigo? Quantas graminhas são hoje? As quatro do costume? Ou hoje há festa? Bernardo esfregou as palmas das mãos para desvanecer a fina camada de suor que as cobria e pigarreou o discurso : - Oiça, Zé , hoje preciso de trinta gramas – um breve silêncio foi acompanhado por um arrebitar das hirsutas sobrancelhas do traficante – Sabe, vou dar uma festa giríssima a bordo do iate do meu pai e quero ter a certeza absoluta que toda a gente se vai divertir imenso. Acha que tem tanto produto ? Uma gargalhada monstruosa fez Bernardo saltar e o olhar de Madalena desviar-se do desfile de moda na TV. Quando conseguiu conter o riso e as lágrimas Zé da Neve respondeu: - Amigo , aqui o Zé só se preocupa quando lhe pedem quilos – tentou compor-se mas o riso persistia - trinta gramas vende a gente aqui em duas horas. Mas diga-me lá uma coisa – a gargalhada deu lugar a um olhar gélido de agiota – o amigo tem dinheiro para isso tudo? Trinta gramas são dois mil e cem euros . Bem contados e em dinheiro que aqui o seu Visa não serve de nada . Bernardo levou a mão ao bolso interior do paletó e retirou um envelope volumoso. Com gestos de desprezo contou as notas e atirou-as para cima da mesa: - Você acha o quê? Eu não sou um desses drogados que vem para aqui lhe pedir fiado – levantou o queixo num tom desafiador – Sou de outra estripe, entende? A arrogância de Bernardo não teve o efeito que normalmente tinha em empregados de restaurante e empregadas de “boutique”. Zé da Neve fixou os seus olhos esmeralda no jovem bem vestido e retorquiu: - Amigo , está irritado, não faça isso é mau para a saúde – lentamente debruçou-se mais uma vez sobre o monte de coca e oferendou uma linha dupla que Bernardo aspirou com sofreguidão – Não leve a mal mas é muito dinheiro . Então é para uma festa? Grandes festas devem ser essas. Um dia destes o amigo convida-me O ardor que invadia as mucosas de Bernardo retardou a resposta que surgiu, ainda mais plena de arrogância: - Acho que não está a entender. É uma festa para gente muito selecta. A nata, sabe o que é a nata da sociedade ? – o indicador demorou-se uns instantes a esfregar os restos da poeira nas gengivas – Gente giríssima e bonita como nós , está a ver ? Acho que você não se ia integrar bem. Sabe, classes sociais. Zé da Neve não respondeu pois a sua atenção estava focada na contagem do dinheiro. Quando terminou devolveu o olhar a Bernardo. Chocou o orgulho cigano com o novo-riquismo prepotente: - Então você vem aqui, à minha casa, falar ao Zé nessas coisas da gentalha rica e acha que o Zé deve ter pena de não ir à porcaria das suas festas? Oiça lá amigo, estou farto de vos ver, Vocês os meninos queques armados em senhores do mundo . Sabe uma coisa? Se você nunca mais cá aparecer a mim não dá prejuízo . Mas a si, se o amigo Zé da Neve lhe faltar com o remédio o menino fica doentinho e vai andar ai doido à procura. E não vai encontrar. Porque ninguém tem branquinha tão boa como aqui o seu cigano. Ninguém, está a perceber? Por isso veja lá se é bem-educado e pede desculpa ou então não lhe vendo nada. Os olhos azuis de Bernardo iluminaram-se como um farol de pânico incontido. O Zé da Neve prosseguiu: - Por isso o amigo vai pedir desculpa e sair daqui com o que quer. E não se arme em Chico esperto comigo ou ainda aparece todo cortado no fundo do Tejo e aqui a sua amiga – o dedo apontou Madalena que se havia encolhido com tom amedrontado no fundo do sofá – acorda amanhã numa casa de putas lá para o Norte de África. Por isso ..Manso , muito manso , e peça desculpa . Já! A ordem do Zé da Neve foi reforçada pelo engatilhar das armas automáticas empunhadas pelos jagunços que até ao momento tinham pautado pela circunspecção a sua presença. A arrogância e a prepotência de Bernardo desapareceram a uma velocidade ainda superior aquela com que tinha “snifado” as linhas : - Oiça Zé , não o queria ofender , por amor de Deus. Peço imensa, mais imensíssima desculpa se o chateei. Não era essa a minha intenção. Você é o máximo, o melhor traficante de todo o distrito de Lisboa e longe de mim querer algum problema consigo. Está a entender, amigo ? – a mão vacilante de Bernardo estendeu-se procurando um aperto reconciliatório. No sofá , encolhida no seu mínimo vestido e esbeltas curvas Madalena emoldurou um sorriso digno de capa de revista cor-de-rosa. O olhar, de novo divertido , de Zé da Neve percorreu o casalinho assustado e deu por terminado o conflito: - Pronto o cigano já não está chateado. Um dia destes o amigo convida para uma das festas no iate, não convida? – Um aceno exagerado de cabeça fez a cabeleira de Bernardo perder alguma compostura - Ó Janas – um dos cúmplices do traficante avançou – pesa aqui trinta bem pesadinhas para o amigo – A restante parte da frase foi dirigida a Bernardo – Tudo junto ou saquinhos de uma ? - Gramas..Separadas , se faz favor – murmurou educada e polidamente o ricaço. O Zé da Neve ergueu-se do seu lugar e dirigiu-se a uma outra divisão da casa. Não proferiu qualquer despedida e apenas demorou um instante os olhos pelas pernas de Madalena. O resto da transacção ficou a cargo de Janas . Com gestos de muito hábito cortou, pesou e ensacou três dezenas de pacotes que foram distribuídos entre a carteira de pele genuína de Madalena e os vários bolsos do casaco de Bernardo. O casal saiu da barraca e entrou com pressa no Porsche que entretanto repousava ,intacto, perante o olhar vigilante dos dois comparsas que acautelavam o exterior da barraca do Zé da Neve. Um chiar de pneus e o ronronar dos muitos cavalos acompanharam a rápida partida dos colunáveis. O silêncio entre ambos durou até ao final do Viaduto Duarte Pacheco. Remexendo a carteira a bela mulher tirou um cigarro que acendeu com nervosismo. Bernardo censurou: - Madalena você ainda fuma? Que horror. Isso está tão fora de moda. A resposta foi proferida numa voz afectada onde era notória a irritação: - Vá-se foder Bernardo . Você quase nos ia fazendo ser mortos por aquela gentalha horrorosa - Por amor de Deus Madalena. Você sabe muito bem que o cigano não estava a falar a sério. O que ele quer é o dinheiro, está a entender? Além disso eu não estou muito habituado a falar com gente rasca. Irritam-me. Percebe? - Olhe que a sua irritação não é lá muito saudável perante as armas daqueles assassinos horrorosos. - Não seja palerma. Você adorou a emoção. Confesse lá. A bela face de Madalena desanuviou-se e a frase seguinte foi dita com um tom melado na voz: - Sabe Bernardo , na verdade até fiquei excitada. Estou aqui toda a ferver. Não quer parar ai no hotel da área de serviço e comer-me? - o convite foi acompanhado por um acariciar da perna do condutor. Imediatamente o gesto foi repelido: - Não seja tonta. Você namora com o meu irmão Gonçalo. Esqueceu-se? - E daí? – Contestou Madalena – parece que faz algum mal se dermos uma quecazinha - Você é muito puta , Madá – a ligeira irritação de Bernardo foi acompanhada pelo aumento da velocidade do bólide – Além disso não tenho preservativo aqui. A bolsa foi uma vez mais rebuscada. Com um suspiro de desanimo Madalena informou: - Eu também não . Por isso esqueça a voltinha – De novo um tom menos assanhado na voz – Então despache-se, a festa está a nossa espera. Bernardo engatou mais uma mudança na caixa de velocidades e sugeriu: - E se você fosse uma querida e fizesse uma linha? Madalena bateu as palmas animada e demorou-se uns breves instantes entre o pequeno espelho de maquilhagem , um dos pacotes adquiridos ao Zé da Neve e as pancadinhas repetitivas e sincopadas do cartão de crédito sobre a cocaína . Talvez o trepidar do carro ou o tremor do pulso delgado tenham sido a causa do descuido; as linhas formaram-se mais grossas do que era hábito e, segundos após a aspiração sôfrega das mesmas ,os canais nasais de ambos explodiam numa cascata de sangue e ranho que tingia as caras roupas. As pupilas do casal cresciam como dois sóis prestes a implodir, no seu fluxo sanguíneo a velocidade estonteante do pó fazia os corações baterem acima das muitas pulsações por minuto. Uma toxicidade perversa trespassou a mente de Bernardo e a sua mão dirigiu-se, sem hesitações, para o que Madalena tinha entre pernas. Com um sorriso de luxúria ela recebeu o toque e afastou as coxas para facilitar o acesso. Disse: - Bernardo, você parece um Deus !! Os olhos azuis de Bernardo brilharam, como duas super novas imersas em Madalena . Retorquiu: - Madalena. Nós somos Deuses! Contemplaram-se, ambos desvairados, sequiosos senhores da Terra e do Olimpo, sentiam-se imortais e divinos. Infelizmente tal pasmar não era adequado ao cento e noventa quilómetros a que se deslocava o Porsche e à proximidade da zona das portagens. Hipnotizados na química ilusória da cocaína explodiram numa bola de fogo quando os seiscentos e dez cavalos de potência embateram, sem vestígios de travagem, no separador da Via Verde.
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