britoribeiro
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« em: Março 22, 2009, 19:44:03 » |
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A Lurdes assomou à porta do quarto arrastando a sogra pelo braço. Esta parecia ter envelhecido dez anos em poucos meses. O ar viçoso de outrora tinha-se esfumado e era substituÃdo por um definhamento acentuado, costas corcovadas, tez macilenta, olhar vago e indiferente. -Então senhor AlÃpio, como está hoje? – pergunta a Lurdes com um sorriso que pretendia ser animador. - Melhor um pouco e tu Rosa, que tal? A inquirida manteve o mutismo e foi a nora que interveio: - Hoje não queria tomar os medicamentos, nem sair de casa. Tive de a arrastar até ao carro… Mas agora está melhor. Pelo menos, já não resmunga como fez durante todo o caminho. Uma lágrima corria lentamente pela face do AlÃpio incapaz de suster a comoção. A vida apresentava-se complicada e mesmo que ele se safasse, ficaria sempre dependente… e a Rosa? Como arranjaria ele forças para cuidar dela? Que mal teria ele feito para merecer tal castigo? Os filhos… será que podiam contar com eles? Pura ilusão! Só se fosse para lhe extorquirem dinheiro. A quem sairiam eles, não foi essa a educação que lhes dera. Enxugou as lágrimas, tentou fazer conversa para animar a mulher que continuava apática aos pés da cama, como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
Ao fim de três semanas teve alta, regressou a casa e todos os dias fazia fisioterapia. Os cuidados médicos e uma força de vontade férrea operaram o quase milagre da sua recuperação. Largou a cadeira de rodas, passou a deslocar-se com uma canadiana, tratava da Rosa o melhor que podia, apenas com a ajuda de uma mulher-a-dias. Teve mais um desgosto quando descobriu que as suas contas bancárias tinham sido esgotadas por iniciativa do filho mais velho, que aproveitara a circunstância do pai estar hospitalizado e a demência da mãe. “Fraca raça, não sai aos nossos†disse-o em tom de despeito e amargura, à s irmãs que o visitaram. Uma manhã de primavera, corria o sol em direcção ao sul, quando sentiu um estrondo metálico vindo do quintal. Assomou à porta da cozinha e os olhos caÃram-lhe na tampa de ferro que cobria o poço. Com a velocidade que a perna esquerda lhe permitia, abeirou-se e viu a Rosa cinco metros mais abaixo a chapinhar na água. Berrou por ajuda, logo o vizinho lhe acudiu, saltando o pequeno muro que dividia as propriedades. O poço era estreito mas o Rodrigo desceu e agarrou a Rosa até chegarem os sapadores que os resgataram do fundo. Foi mais uma vez internada, desta vez para curar os traumatismos da queda, que não conseguia explicar. “O meu pai estava no poço, fui ter com ele†dissera ela à guisa de explicação. Regressou calma, estável, durante algum tempo conseguiu até assumir a lide da casa. Parecia a Rosa de antigamente, com mais vida… mas foi sol de pouca dura. Ao chegar da fisioterapia encontrou-a caÃda na cozinha. Por todo o lado viam-se embalagens vazias de medicamentos. Largou a muleta, deixou-se cair de joelhos ao seu lado. Tocou-lhe na cara, ainda estava morna, mas pressentiu o pior. Arrastou-se até ao telefone e com voz embargada explicou ao operador do 112 o que estava a acontecer. A autópsia confirmou que tinha falecido devido à ingestão de uma elevada quantidade de medicamentos. Passou a viver só, os filhos visitavam-no a espaços e passava algumas temporadas em Âncora, sua terra natal, a convite das irmãs. Muitos meses depois, na solidão da noite, decidiu escrever um bilhete à sua primeira namorada, também Rosa de sua graça, viúva há vários anos. Dias depois, tremeram-lhe as mãos ao receber do carteiro uma carta com carimbo de Lisboa. Leu-a, releu-a muitas vezes. O semblante abriu-se e um sorriso amaciou as rugas que as preocupações e os desgostos tinham sulcado. Às cartas sucederam-se os telefonemas, aos telefonemas sucederam-se as visitas, o namoro terminou em casamento. O AlÃpio fez a mala e foi viver para Lisboa, onde a Rosa tinha um pequeno restaurante. Quando podiam, escapavam-se até aos arredores de Ponte de Lima onde ela possuÃa uma pequena propriedade. Recuperou a alegria de viver, encontrou na enteada uma filha, voltou a ter famÃlia, apesar da amargura que sentia e da qual não fazia segredo pelo comportamento dos filhos. As saudades que tinha das crianças, os netos, os seus meninos. Não falhava uma semana sem lhes telefonar, todas as noites sonhava com eles, com as suas brincadeiras e traquinices. Pensaram em trespassar o restaurante, faziam tenções de comprar um apartamento em Âncora, onde a Rosa também tinha famÃlia, fizeram projectos para o futuro, alimentados pelo amor descoberto no pôr-do-sol da vida. Uma noite quando estavam a ver televisão, AlÃpio levou a mão à cabeça, tentou levantar-se do sofá e caiu de borco. Tivera outro AVC, esteve em coma três dias e faleceu sem ter recobrado conhecimento. Foi sepultado no pequeno cemitério de Vitorino das Donas, no jazigo da esposa, ao lado seu primeiro marido, longe de Âncora, sua terra natal, longe de Matosinhos, que o fez homem. Fim
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