Voz da alma

[Pedro Ventura]

Comoveu-me deveras, tamanha ovação naquele auditório pejado de convidados aperaltados dentro das suas indumentárias engomadas a preceito. Foi digno de se ver! Um prémio de reconhecimento às minhas palavras… Toda a vida trabalhei nas mais árduas tarefas, e sempre escrevi as páginas da minha vida miserável ignorada por tudo e por todos. Sofri na pele as guerras e sobrevivi a pestes, perdi entes queridos, e agora vejo-me agraciado, depois de um manuscrito meu, aproveitado pelo oportunismo de amigos disfarçados, ter chegado às mãos de um senhor influente, de fraque e charuto, que acabou por passar a mensagem “ Temos escritor! Admirável, brilhante!..”, a meia dúzia de lambe botas que trataram de todo o processo e do meu pedestal. Sim, é essa a palavra que usei, lambe botas! Foi coisa que, com muito orgulho, nunca fui…
Mas à minha alma ninguém cala a voz. E é essa voz que trago agora de volta. Uma voz revoltosa, que emerge do eterno silêncio, uma voz com um travo a resignação. Aos olhos que se fecharam perante a minha fome e o meu talento nato, nunca hei-de perdoar. Estupores! Miseráveis! Os louros agora de nada me servem, nada me vai fazer esquecer os roncos do meu estômago faminto enquanto deambulava pelos botequins a pedir uma côdea e a todas as portas onde roguei guarida e um pouco de calor e compaixão. Mas as minhas privações mais básicas nunca me fizeram perder o discernimento para escrever aquilo que os meus olhos humedecidos gravavam. Já não faço parte física do mundo, o meu passaporte da vida caducou e morri tuberculoso. Fui em vida um autodidacta incógnito, um compilador da vida, mais um daqueles a que a morte trouxe o reconhecimento, e agora ficam apenas as minhas palavras, que surgiram de repente escritas a ouro… Estejam descansados seus filhos-da-puta que também vão morrer como eu! E aqui, garanto-vos, falamos todos a mesma língua…


2008

[Goreti Dias]

E não há pedestais...
Uma crítica bem construída a uma sociedade que não valoriza o talento dos vivos, mas dá supremo apreço ao dos mortos ... se isso lhes proporcionar mais valias!
Um abraço

[Laura]

Sempre odiei velórios, por causa disso... a hipocrisia; tentar resgatar a culpa, enganar a consciência, esquecer o que não se fez pelo outro, quando estava vivo. Porto-me sempre muito mal nos velórios daqueles que amo. Infelizmente, já tive que ir a alguns. No que se refere aos artistas, é de facto chocante. Está sempre a acontecer. Gostei muito desta chamada de atenção.