E ela com aquela maneira enfastiada de estar à parede a ver passar o mundo, ela não sabe mas faz lembrar ao chefe da brigada uma donzela rebelde dos filmes americanos à espera do amante-estivador.
-José Cardoso Pires, Balada da praia dos cães

Balada da praia dos cães é provavelmente a mais conhecida obra de José Cardoso Pires, juntamente, talvez, com O delfim (que terá a sua própria análise em breve). Nela, Cardoso Pires brinca com as convenções dos livros policiais, conta uma investigação de desfecho conhecido em que o mais importante não é quem matou quem, mas o que o levou a fazê-lo.
É desta maneira que nos é apresentado o assassinato do Major Dantas Castro, evadido de Elvas, onde estava prisioneiro por associação a organizações anti-Salazaristas no período de ouro da Ditadura, corria o ano de 1960. As suspeitas recaem sobre os seus companheiros de fuga, o arquitecto Fontenova preso em Elvas pelas mesmas razões que o Major e o Cabo Barroca, ao serviço em Elvas na altura da evasão. Suspeita é também Mena, uma rapariga com quem o Major tem uma relação perversamente dominadora.
O cadáver do Major é descoberto por cães famintos na Praia do Mastro, iniciando o livro com um suposto relatório médico-policial da descoberta do corpo. Encarregue das Investigações está o Chefe Elias Santana, da Polícia Judiciária, a quem o caso foi entregue após uma primeira aprovação por parte da PIDE, já que “As polícias devem-se colaboração no âmbito das suas competências.”
Ao longo do livro somos conduzidos em dois tempos e espaços. Por um lado acompanhamos o Chefe Elias Santana, o “covas” como é conhecido na PJ, pelas suas inquirições a testemunhas e envolvidos, nas suas discussões com o inspector Otero, seu superior mas antigo companheiro de escola, na sua vida triste e solitária quando chega a casa, com vista para o Tejo e um lagarto de estimação, para rever os pormenores mais estranhos do caso. Somos também levados para a Casa da Vereda através das confissões de Mena ao Chefe Elias, a casa onde os foragidos se escondiam e aguardavam novos contactos do Movimento para se porem a salvo.
Este livro tem, obviamente, um extenso conteúdo político mas vai muito para além disso. Não se queda por analisar os procedimentos das polícias no período pré-revolução mas vai ao ponto de criar laços de empatia com personagens que, à partida, consideraríamos odiáveis pela sua ligação ao regime. Exemplo claro disso é o Chefe “Covas”, que é muito mais do que um simples funcionário cego do estado. É, descrito maravilhosamente por Cardoso Pires, um homem triste, solitário, que dedicou a sua vida ao trabalho não para defender política mas para apanhar verdadeiros criminosos, assassinos, daí a sua alcunha: pela sua predilecção por casos de homicídio. Elias Santana é um homem claramente triste, tem no lagarto Lizardo a sua única companhia e descobre-se ao longo da história uma crescente obsessão por Mena, a rapariga que estava envolvida com o Major. Elias refere-se a ela muitas vezes como a “rapariga da fotografia”, uma fotografia encontrada na Casa da Vereda em que Mena se retratava quase nua, e acaba por desenvolver uma relação paralela com a fotografia do processo, imaginando-a como uma mulher à parte, fantasiando com ela durante as noites em que mancha os pijamas.
Outro personagem extremamente interessante é o do próprio Major, visto pelos olhos de Mena, que é o típico Marialva retratado com tanta mestria por Cardoso Pires em outras obras (O delfim), confiante de que as mulheres estão na terra para seu único prazer, escondendo a sua faceta machista atrás da máscara revolucionária. Os constantes maus tratos a Mena e aos companheiros da casa, que ele considera inferiores intelectuais, são descritos pelo autor, através do olhar feminino de Mena, de uma maneira brutal, contribuíndo em muito para a compreensão do leitor para as razões do assassínio do Major.
Mas Mena é, sem dúvida, a personagem mais intrigante deste romance. Mena é o espelho da juventude que cresceu na Ditatura e que se rebela com o seu destino, frequentadora dos círculos estudantis revolucionários e amante do Major. É um enigma o porquê da sua permanência mesmo após os constantes maus tratos, físicos e psicológicos, com que o falecido a massacrava. O leitor pode questionar-se se o preço da liberdade será assim tão alto e individual?
Para mim, a grande beleza da obra está no estudo destas características humanas, tantas vezes esquecidas ao falar da revolução, que o autor tão bem retrata em cada um dos seus personagens. Obviamente que a mensagem política é grande demais para ser ignorada: os movimentos das polícias para lançar aos jornais este crime como um acto dos movimentos revolucionários, marcando-os como selvagens aos olhos da opinião pública, as constantes trocas entre a PIDE e a PJ e a sua falta de entendimento, a maneira como operavam os delatores, tudo isso pode ser encontrada neste brilhante livro.
A Balada da praia dos cães é, evidentemente, um livro político. Mas agora que a tensão passou, agora que já lá vão 34 anos sobre a revolução, podemos também deliciarmo-nos com as brilhantes caracterizações dos personagens de José Cardoso Pires.
Escrito originalmente aqui