missbja
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« em: Setembro 04, 2008, 20:11:14 » |
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O meu nome é Teresa, tenho doze anos, e vivi em Riodouro, no concelho de Cabeceiras de Basto. Hoje os meus pais choram por mim. Vêm-me nesta urna de madeira escura e lançam rios de lágrimas de falsa ternura. Eu sei que foram eles que me fizeram isto. Eu sei que a minha famÃlia desconhece a perturbadora verdade dos seus actos. Então desço nesta tumba, pensam eles, para os livrar daquilo que o mais atormenta: a minha pessoa como fonte de verdades inescrutáveis. Fecharam a urna e desceram-me para as profundezas da terra. Ouvi a terra a ser lançada e o som dos soluços constantes a ser abafado.
O condutor bêbado que me tinha atropelado, quando a minha mãe me tinha ordenado que lhe fosse comprar tabaco. O meu pai a queimar-me as pernas com o varão da lareira, sempre em sÃtios onde ninguém pudesse ver. A minha mãe a baloiçar-se freneticamente na cadeira de baloiço com um sorriso manÃaco, o cigarro constantemente nos seus lábios vermelhos. Fiquei dias neste silêncio profundo, estas memórias a acumularem-se numa grande bola dentro da minha mente.
Após o sétimo dia, senti o tecido do forro entre os meus pequenos dedos e agarrei o pano branco. Senti um arrepio violento espalhar-se pelo meu corpo e abri os olhos repentinamente. A minha boca abriu-se e inspirei o pó com força; senti a minha pele fria e morta. A primeira coisa que fiz foi gritar um guincho terrorÃfico, que até arrepiaria as pétalas das flores lá em cima. Comecei a estremecer e a partir a urna com as minhas pequenas mão e com cabeçadas furiosas. De repente, a terra começou a entrar na minha urna e eu escavei, exasperada por chegar ao mundo dos vivos. A terra entorpecia-me a visão mas eu sabia que para cima era o caminho certo. Finalmente, senti metade do meu braço fora da terra e cerrei o punho. Com a minha outra mão, ergui-me vagarosamente até todo o meu corpo estar em cima da terra. O meu respirar era intenso, como se o ar que me rodeava fosse um veneno para os meus órgãos desfeitos. Levantei-me, em todo o meu horror, e observei o cemitério em que me tinham enterrado.
No crepúsculo, o cemitério estava vazio. Ouvi um miar agudo perto de mim e olhei para baixo. Ajoelhei-me e acariciei o pelo da minha fiel gata, Cissy. Ela ronronou enquanto a sua queimadura, igual às minhas, me reavivava a reminiscência daquilo que passamos juntas. Olhou-me com ternura através do único olho que lhe sobrava. Sorri ao ver a cicatriz em forma de cruz que atravessava o olho cego. Ela tinha-me esperado pois sabia que eu ia voltar.
Levantei-me num instante e observei a minha campa. Peguei numa cruz de mármore que adornava friamente o meu jazigo, e comecei a caminhar em direcção ao portão. Enquanto que os meus passos não se ouviam, o vento assobiava sonoramente, e as nuvens acumulavam-se, muito escuras, no céu. Abri o portão enferrujado e ouvi as dobradiças a rasparem umas nas outras. A Cissy seguia-me pelo caminho solitário até à casa dos meus pais. No meio do bosque, ouvi o rastejar das cobras a fugir de mim. Vi os ouriços-cacheiros a enrolarem-se, os seus espinhos prontos a atacarem-me. Até as árvores pareciam curvar-se para me permitir a passagem. As plantas que eu pisava morriam nesse instante e, rapidamente, criei um trajecto mórbido e sem vida.
Passados alguns minutos encontrei uma casa branca no meio do meu percurso. O som da cruz de mármore que eu arrastava pela pedra dos degraus da entrada da casa, alertou os habitantes para a minha presença. Enquanto contornava a casa, os meus olhos fixaram-se na enxada no meio de uma plantação de tomates. Apercebi-me que seria um melhor objecto que a minha cruz e decidi levá-lo.
- Hei, o que pensas que estás a fazer?
Continuei o meu caminho e ignorei a voz que me chamava. No entanto, a pessoa agarrou-me no braço e impediu-me de continuar. Grande erro. Imediatamente, a minha mão com a cruz de mármore, voou em direcção à cabeça do indivÃduo e matei-o. O seu crânio destruÃdo, e o sangue que se espalhava, misturaram-se com os tomates esmagados. Era a primeira vez que via tanto sumo vermelho na minha vida, principalmente espalhado pela minha roupa. Não me afectou nem um bocadinho, por isso virei as costas e peguei na enxada. Com a mão direita, arrastei-a da mesma maneira que arrastara a cruz. O som do metal a bater na pedra do chão não me irritava. Enquanto me afastava da casa ouvi gritos estridentes, mas já estava bem escondida no bosque, por isso ninguém veio atrás de mim.
Começou a chover mesmo antes de finalmente encontrar a minha casa. Na minha aldeia, toda a gente sabe tudo, mas nunca ninguém sabe de nada. Perguntei-me se os vizinhos ouviam os meus gritos enquanto que o meu pai me queimava a pele praticamente todos os dias.
A Cissy bufou enquanto eu cravava a enxada na porta de madeira. Ela também tinha sido vÃtima de pontapés da minha mãe inúmeras ocasiões. Com renovada convicção, enterrei a enxada de novo na porta e arranquei um enorme bocado, permitindo-me ter uma clara visão da minha cozinha. Rodei a maçaneta desnecessariamente. Quando abri a porta, esta caiu para o lado com um estrondo. Subi o único degrau de entrada e arrastei, de novo, a enxada pela cozinha até à sala ao lado. Sabia que os meus pais, provavelmente já acordados, se encontravam nos quartos do andar de cima.
Na sala, antes de virar à direita para o corredor, olhei por uns instantes para o grande espelho na parede. O meu cabelo preto e encaracolado estava oleoso e cheio de lama, faltava-me um bocado de pele no lado esquerdo da minha cara o que possibilitava a assombrosa visão do meu globo ocular; o sangue escorria-me pela face e pelo vestido branco, tornando-me cruel e sanguinária. À beira do meu reflexo, vi a minha mãe, a surgir atrás de mim sorrateiramente.
Virei-me e ela levou a mão à boca em terror. Um gritou horripilante encheu a divisão e vi a Cissy a saltar-lhe à cara e a arranhá-la no pescoço. Assim, foi empurrada contra a parede e permaneceu lá. A última coisa que presenciou foi o meu corpo desfigurado a saltar na sua direcção e a decapitá-la com um só golpe da enxada.
Depois de todos os gritos da minha mãe, instalou-se um silêncio de morte. As orelhas da Cissy abanaram e ela bufou em direcção à escada de mármore.
- Quem está ai?
Era a voz do meu pai. Comecei a subir as escadas de pedra e encontrei-me frente a ele no andar de cima. O terraço permitia-me ver que uma tempestade tinha-se desencadeado Os relâmpagos que se soltavam das nuvens negras iluminavam-me a face deformada. O meu pai apontou-me a arma que tinha comprado, clandestinamente, à uns anos atrás. Dei um passo em frente e ele, fechou os olhos, e deu-me um tiro. Senti a minha cabeça a cambalear para trás mas não me infligir qualquer dor. Voltei a olhar em frente e enfrentei-o com um sorriso afectado. Ele estremeceu e paralisou com a arma apontada para mim, o cano ainda a fumegar. Não se mexeu quando avancei, com a Cissy ao meu lado. O seu olhar mostrava uma pessoa aterrorizada e patética. Reconheci aquele medo nos anos em que vivi amedrontada, o medo de morrer. Levantei a enxada e enterrei-a mesmo no peito dele. O sangue que jorrava violentamente do seu corpo molhou-me a cara. Lambi os lábios e saboreei a doce vingança. Observei-o enquanto estremecia de dor e aproximei-me da chuva. A água refrescava-me a cara e senti os meus cabelos a ficarem pesados e longos enquanto eu estendia os meus pequenos dedos para apanhar as gotas de água.
Já não ouvia nada para além da chuva, por isso, concluà que o meu pai já estava morto. Sentei-me, no chão, com as pernas cruzadas, e deixei a Cissy aconchegar-se entre elas. Olhei para o céu de um azul negro e deixei-me cair para o lado. O meu corpo, estendido na dureza fria da pedra, pode finalmente descansar em paz.
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