EM MEMÓRIA DO MOURA

Decidiu gozar a juventude até aos cinquenta nos e aí interrompeu-a e casou. Inesperada e quase secretamente. Fechado que sempre fora relativamente à sua vida amorosa, de amantes e quejandas vidas, limitou-se quando regressou ao trabalho a divulgar que tinha sido pedido em casamento pela esposa e que tinha aceite. Nada mais que isso. E quem desejasse mais desenvolvimento do tema poderia esperar sentado até se cansar e adormecer.
Diferente no Moura não era de forma alguma o ter-se casado e ter sido pai passados seis meses, duma menina que não prematura. Tal acontecera certamente numa das muitas tardes de domingo no Castelo do Queijo ou Leça da Palmeira em que costumava descansar no seu Fiat com as janelas hermeticamente tapadas com jornais para poder usufruir do sossego na companhia duma personagem feminina, longe dos mirones que não entendiam a necessidade de repouso de quem trabalhava seis dias por semana fora as horas extraordinárias.
Moura era um homem prático, talvez por vezes demasiado prático. Recordo-me que como todos na empresa tinha ao seu lado esquerdo uma máquina de escrever que nunca usava. Intrigado e pressionado pela entidade patronal, perguntei-lhe um dia porque não a utilizava e a resposta dele cilindrou-me de lógica: - Sabes como é, por exemplo numa palavra em que tenho dúvida de ser com O ou com U, se for manuscrita, dá para ambas!
Quase sempre me perdi na prontidão e naturalidade da sua réplica. Eu e todos os outros colegas. Tinha por hábito depois de estacionar no parque e após conseguir trancar o carro com cinco voltas em redor do mesmo porque nem todas as portas funcionavam, recolher a antena do rádio. Uma manhã, atrevi-me feito detective e obtive como explicação científica: - Convém recolher a antena por causa da bateria!
Numa boleia que lhe pedi, parámos sem gasolina percorridos quinhentos metros a uns cinquenta dum posto abastecedor. Reação do Moura, procurar o velho envelope no qual anotava a quilometragem quando abastecia porque a bóia do depósito há muito que batera do chão, para confirmar se tal situação tinha razão justificativa para acontecer, em vez de se dirigir à bomba e arranjar gasolina.
Era célebre o levantamento do seu primeiro automóvel após um mês de encartado. Depois duma subida íngreme não conseguindo dominar a marcha do veículo atravessou a rua perpendicular, entrou pela vidraça e ficou na montra do estabelecimento vitimado. E uma vez mais a culpa não lhe cabia, mas sim às autoridades que não haviam previsto condutores como ele e não haviam instalado grades protectores como fazem nas saídas das escolas.
E da inversão de marcha de emergência quando não se apercebendo do alarme da ponte levadiça ao iniciar a sua passagem redopiou qual Prost qual menino bonito da fórmula um e conseguiu suster o carro na traseira dum camião, em segurança e não dentro de água.
A última ocorreu há uma dúzia de anos quando me encontrava internado após um grave acidente de viação, sem vontade de mexer nem falar e até de sorrir quando para meu espanto nunca desvendado, me surgiu o Moura aos pés da cama e explodiu com a sua naturalidade: - Que fazes aí ? , logo tu que nunca foste maricas!...
Dezenas de muitas outras cenas reais da tua vida poderia aqui registar velho Moura, mas estas chegam para te recordar e te fazer companheiro destes amigos com quem partilho a memória da nossa rica e saudosa vivência.