Anne Marie
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« em: Agosto 27, 2008, 18:34:46 » |
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Capitulo – II
A semente da dor
O velho rádio de válvula que já só funcionava com uns abanões, interrompe o silêncio libertando o alerta à s 22h 55 m é transmitida a canção â€E depois do Adeusâ€, de Paulo de Carvalho. Este foi um dos sinais previamente combinados pelos golpistas e que desencadeou a tomada de posições da primeira fase do golpe de estado. O segundo sinal foi dado à s 0h20 m, quando foi transmitida a canção “Grândola Vila Morenaâ€, de José Afonso. O paÃs parou nessa manhã. Em casa do António habitava o medo, ninguém saiu, era o dia da revolução. A liberdade transformou-se em cravos, o poder fascista entregava-se sem resistência. O dia 25 de Abril de 1974 tinha chegado, trazendo com ele o sorriso de uma Nova Era.
Passados alguns meses António entra com um requerimento na câmara municipal do Porto, para que lhe fosse atribuÃda uma casa com condições habitacionais. O pedido foi acedido, num bairro social em final de construção, tinha-lhe sido atribuÃda uma casa tipo três.
Nesse dia António chega a casa eufórico, surpreendentemente pela primeira vez sentia-se uns raios de alegria no seu olhar. -Maria, Maria anda cá mulher!
Maria nem queria acreditar no rosto de alegria que via á sua frente. - Diz António que foi? Desembucha homem, porque estás tão feliz? Que foi que aconteceu?
- Onde estão os teus filhos? Quero todos aqui presentes, vai Maria vai chama-los.
Maria sai para a rua numa correria infernal, chamando um a um. - Venham depressa o vosso pai tem uma boa noticia para nos dar!
Vitória não ficou surpreendida, e em tom irónico responde a Maria sua mãe: - Quando a esmola é muita o pobre desconfia. Está bem! Vamos lá ver no que isto dá.
Já se encontravam todos reunidos aguardando a boa nova, quando António decide começar a palestra. - Tenho uma notÃcia muito boa para vos dar. Hoje entregaram-me a chave da minha casa nova. Vocês nem imaginam como ela é linda e grande.
Mariana não se mostrou muito interessada, não sabia o que era uma casa grande. Para esta criança uma casa grande era o seu mundo colorido, o sonho e a fantasia.
Joaquim, o filho de sete anos estava numa alegria explosiva. - Paizinho, vai ter um quarto só para mim?
- Claro que vais meu filho, os homens têm que ter a sua privacidade.
Vitória, Alice e Eduarda não se mostraram muito entusiasmadas. Mantiveram-se em silêncio.
António olhou para as filhas com o sorriso transfigurado em sarcasmo. - e então as meninas? Parece que não ficaram muito satisfeitas! Não me digam que já estão com saudades do chiqueiro? Ou será que as princesas também queriam um quarto para cada uma? Vejam lá a casa só tem três quartos mas se quiserem eu alugo-vos um castelo.
Vitória era a filha mais velha, tinha acabado de completar o seu décimo quinto aniversário. Trabalhava numa pequena fábrica de confecções desde dos seus doze anos. Apesar de temer a malvadez do seu pai, nesse dia não suportou o sarcasmo e ousou em responder: - Não se preocupe paizinho, quando se está habituada a viver no chiqueiro, as porcas cabem em qualquer lado.
Maria naquele instante ficou mais pálida que a cal da parede, e o silêncio que calou as telhas por uns segundos estremeciam. António puxa pelo cinto de pele genuÃna e crava a fivela nas costas de sua filha. - Quem é que tu pensas que és minha filha da puta? agora vais saber como guincham as porcas como tu e a tua mãe que não te sabe dar educação.
O chicotear daquele cinto era arrepiante, os gritos misturavam-se com a dor daqueles dois corpos franzidos. As crianças choravam desalmadamente como quem pede clemência a um pai surdo de tirania. De quem quer, pode e manda.
Os minutos iam passando descontrolados até que a exaustão da fúria enraivecida passasse. O silêncio voltou mas desta vez já carregado de nódoas negras e sangue (de um pai exemplar).
António acende um cigarro e sai pela porta afora. As crianças correm em auxÃlio de sua mãe e de vitória, atemorizadas. Vitória olhou para os olhos de sua mãe carregados de lágrimas, abraça-se a ela, pedindo-lhe perdão e ao mesmo tempo diz-lhe: - Mãezinha este homem é um monstro.
- Não minha filha não me peça perdão já nem sinto a pancada. O que mais me dói é ver-vos padecer tão novos.
Continua.
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