Pedro Ventura
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« em: Novembro 02, 2008, 12:58:46 » |
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Na Freixêda, uma aldeia esquecida entre granitos e pinheirais, há muito que se perdera o hábito de se deixar a chave na porta. Não é que as gentes não fossem de confiança, mas com o advento da televisão, e todas as desgraças e maldades que nela se vêm, a população aldeã teve de se premunir do mundo enlouquecido. Neste lugarejo, poucos foram os atritos – e quando os houve, o motivo era sempre o mesmo: a terra, o bem mais precioso – dignos do relato de um ancião. A paz ainda reinava neste povoado bucólico e amistoso. Mas houve, há bem pouco tempo, um domingo diferente e digno de ser narrado. Era dia de missa e as beatas amontoavam-se e entravam na casa do Senhor, para se ajoelharem no genuflexório entre xailes, lenços negros, rezas e manusear de rosários. Nessa manhã, António atravessara o largo do coreto em passo célere e entrara, esbaforido, na taberna do Sr. Júlio. Algumas beatas mais curiosas estacaram para divisar algum indÃcio do sucedido, enquanto outras, mais espevitas, aproveitavam e passavam à frente com o intento de apanharem um lugar mais perto do altar aprumado. Na taberna, numa mesa, já se ouvia o som das peças de dominó no mármore frio, e, noutra, o silêncio meditativo da sueca, que, segundo reza a lenda, foi inventada por mudos. - Tira-me aà um copo três, Júlio! – diz António, assim que rompe taberna adentro. - Logo de manhã?! - Vá, cala-te e serve-me! Não sei qual é a estranheza… Até parece que bebo refrigerantes de manhã… – diz António, visivelmente desorientado e com os nervos em franja. - Que se passa homem, para entrares aqui neste aparato? Este foi o momento em que se pressagiou no estabelecimento algo de ruim. As peças de dominó emudeceram, e, três dos quatro jogadores de sueca começaram a falar em sussurro, virados para o balcão, ornamentado com um presunto, e de olhos postados em António. O quarto, aproveitava a distracção dos companheiros para trocar umas cartas e fazer uma pequena batota. - Sabes lá… - António vira o copo de uma assentada, e limpa as beiças à s mangas da camisa. - Desembucha homem! - Hoje fui ao meu pedaço de terra e aconteceu uma desgraça… Cheguei lá e, das cebolas que tinha lá plantado, e que estavam prontas para serem apanhadas, nem uma sobrou. - Foi coisa de bicho, António? – pergunta o batoteiro, disfarçando enquanto fazia a marosca e escolhia as cartas que lhe convinham. - Não, foi coisa de homem! – exclamou - Tira-me outro copo Júlio! E o pior é que me deixaram lá uma mensagem escrita num pedaço de cartão. Filhos da… que ainda gozam com quem trabalha de sol a sol. Mas eu vou descobrir quem foi, ai isso é que vou... Não se livram de uma carga de porrada! - Que dizia? – perguntou um dos jogadores de dominó. - Que dizia?! Querem mesmo saber?! – bebe o segundo copo num repente. Todos os olhos estavam colados em António. Até os do batoteiro de sueca, que já tinha feito a falcatrua e que agora podia atentar à conversa. - Dizia o seguinte: A TERRA É DE QUEM A CULTIVA, AS CEBOLAS SÃO DE QUEM AS APANHA. Foi por respeito a António, somente por respeito, que os homens que ali se encontravam não soltaram uma gargalhada geral. António bebeu mais um copo e saiu mais calmo do estabelecimento. Assim que sai, os passatempos foram retomados. Há que dizer que o batoteiro foi apanhado e que o jogo ficou por ali. Quanto ao ladrão que roubou as cebolas, nunca se soube o nome.
2007
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