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Autor Tópico: Ganja  (Lida 2116 vezes)
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Djabal
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« em: Outubro 31, 2008, 18:11:40 »


A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético.
Borges



Lâmpada: este é meu nome. Colocada num plinto de mármore.  A forma redonda, diferente das demais. Quando acesa, não consigo ver e tampouco ser vista. As possibilidades da memória e relato vêm quando desligada. A memória é transmitida pelo bocal. Ele arquiva a experiências das antecessoras. A visão é dada pelos filamentos.
Estou numa sala retangular. O recinto é uma célula de uma biblioteca. Uma das paredes é inteiramente de vidro, as demais repletas de livros dispostos numa ordem simétrica. Duas poltronas e um sofá sobre tapetes antigos completam a decoração. Entre os estofados uma mesa de apoio e sobre ela: eu e a campainha, colocada agora. Provavelmente chegará alguém para visitar o homem do Povo do Livro.
É calmo. Nove décadas de vida. A única indicação da idade é o cajado com castão que o acompanha. No mais é jovial. Viúvo. Os olhos expressivos, mansos, acompanham o sorriso permanente e enigmático. Prático e sábio. Começou a colecionar livros aos oito anos, e continua. Só os príncipes têm senso de medida; é rigoroso nos horários.
Diariamente, durante duas ou três horas, a moça lê em voz alta, uma obra escolhida. Posso dizer que a minha existência é longeva quanto a dele. Fico acesa por pouco tempo. Descanso a maior parte do tempo. Ele perdeu a visão, num azar do acaso, segundo ele mesmo sempre diz. A hipótese do excesso de uso, não poderia ser descartada. Hoje o tempo é de reflexão e calma. Ele já viu tudo que o homem foi destinado para ver.
Chega seu amigo. São duas e trinta horas. Conversam um pouco, perguntas recíprocas sobre a saúde. Cafés sem açúcar para ambos.
Durante a conversa escapa do amigo a visita à torre de Montaigne. “Ah, você esteve em Bordeaux?†“Sim, fui até lá e visitei também a casa de La Boétíe, em Sarlatâ€. “Esse é um dos meus autores prediletos, você sabe, não?†“Sei. Você escolheu uma frase dele para seu ‘ex-líbris’â€. “Você tem uma boa memória. A minha está um tanto danificada, principalmente no departamento dos nomes próprios. A cada dia que passa, tenho mais dificuldades para lembrar-me deles. Nada que o tempo não resolva. Tenho a primeira edição dos Ensaios. Uma aquisição saborosa. O que traz aqui?†“Venho trazer-lhe um presente. Um livro de um amigo. Ele é  uma voz íntegra e original da literatura atual.†“Do que fala ele?†“Fala do amor, das formas que assume em geral; da família, das montagens e remontagens sucessivas pelas quais ela passa.†“Sim, sim, como ele se chama?†“É o ramo português da família ‘ Ponce de Leon’: André de Leones.†“Será mesmo?†“Nem sei. Mas a imagem de alguém procurando a fonte da juventude é bem sugestiva para mim.†Riram.
Descobriram amigos e professores em comum. Freqüentaram a mesma escola. Confessou que lia durante a aula. Conversaram sobre a premiação de escritores.
“O senhor conhece Le Clézio, o premiado com o Nobel desse ano?†“Não, não o conheço.†“Você o conhece?†“Li alguma coisa dele.†“E que tal?†“Eu, particularmente gosto. Ele fala, defende e mostra o ponto de vista dos excluídos. Uma literatura que estende a mão para o diálogo. Ilustra as diferenças. E justamente por esse motivo foi alvo de muitas críticas. Peixe Dourado conta a viagem de uma órfã pelo norte da Ãfrica e Europa. Mistura as culturas diferentes. Quarentena não é uma leitura fácil, com tantas informações, exige um grande conhecimento do seu leitor, ou – no mínimo - curiosidade. Vai de Rimbaud à Botânica; das Ilhas Maurício à Plate, Gabriel, Pigeon House Rock, Gunner’s Quoin e Coin de Mire; do Almíscar ao massacre de Fourmies; de Aldebarã (Rohini) aos cães famintos de Aden; do Heliotrópio à rebelião dos Sepoys. Uma história narrada em várias camadas de tempo. Foi uma premiação justa.â€
- “Meu amigo, hoje em dia os leitores querem sentimentos e emoçõesâ€, pontuou.
Tomaram seu segundo café, agora com leite. 
“Eu tive muita sorte. Minha mulher adorava ler. Ela foi um grande incentivo para formar a minha biblioteca. Às vezes, tínhamos problemas de dinheiro ao final do mês e ela sempre me apoiou. Iniciei minha coleção em vinte e três. São oitenta anos de leitura. Todas as dependências da casa estão tomadas, e quando terminou o espaço, aluguei um apartamento aqui na frente.â€
Eles saíram para ver a primeira edição dos Ensaios de Montaigne; o manuscrito do Grande Sertão: Veredas; a primeira poesia concreta (impressa em forma de cálice) publicada em livro, na época de Gutenberg, e uma série de outras raridades. Ele apanha todas as obras, de memória, no lugar exato da estante. Abre o livro exatamente na página objeto da conversa.
Sentam-se.
 â€œAgora incentivo o Mário a ler. Ele me conduz para todos meus compromissos e, não raro, fica horas me esperando. Dei-lhe de presente Memórias Póstumas.†“E então, ele apreciou?†“Creio que não. Ele começou e não terminou.†“E se o senhor começasse pelas Memórias de um Sargento de Milícias, não teria mais sucesso?†“É verdade, não havia pensado nisso. Ele é mais divertido, mais próximo do nosso tempo. Farei isso.â€
A conversa segue adiante até se extinguir. O visitante sai é acompanhado até a porta. O homem volta, senta, toca a campainha. Aparece uma moça e inicia a leitura. Pela sexta vez lê Proust.
Acompanho a cena. Perco-me em recordações. Vivo num paraíso. Um lugar calmo, cercado de todos os pensamentos deixados por escrito pelos homens. Ouvi uma boa parte deles. Gosto de ouvir o Quixote. Também ouço as histórias de outros, jamais as experimentarei. Experimentar é diferente de ver, é saber sem compreender. Mas estou livre de todas as infâmias que ouço existirem fora daqui. Apesar de fixa, a minha curiosidade tornou-me nômade.
Viajei por todos os continentes, conheci quase todas as nacionalidades, numa viagem a roda da minha sala. Essa viagem foi pouco aleatória, foi planejada e seguiu uma ordem. Escapou de mim o imprevisto. A conversa de agora há pouco, por exemplo. Ela foi mais vívida, mais tocante e possuidora de uma tinta diferente da que impregna a folha branca.
Há dúvidas que não consegui resolver. Buscas que resultaram infrutíferas. Saboreio um grande quebra cabeças, vejo cenas esparsas, compreensíveis em si mesmas. Entretanto, os vazios existentes, nublam o plano geral. Existem muitas perguntas sem respostas. Talvez as mais importantes. Qual o valor das coisas? Qual o valor das idéias?
As coisas são fascinantes. Todas tendem a permanecer. A permanência do homem se dá pela destruição das coisas. O fascínio do destruir, de apagar, do recomeçar.
Na coleção que habito encontrei a história de um príncipe chinês contemporâneo de Aníbal. Ele destruiu todas as bibliotecas existentes em seu reino. Livros acumulados desde há três mil anos. Raciocinou iniciar uma nova era e se denominou o Primeiro Imperador. Intentava iniciar uma dinastia infinita e fazer de todo aniquilador de bibliotecas um discípulo seu. A história não soube dizer qual sentimento assaltou o comandante cartaginês. Sabemos apenas que hesitou na destruição da capital do Império. Foi destruído por Roma.
A queima de livros é uma destruição muito particular. Mais desilusão que engenho. Auto-de-fé. Acompanhei a narrativa de um professor que viveu encerrado entre seus livros. Apenas recebia a luz do sol por uma clarabóia no teto. Acreditava que todos os espaços, deveriam ser utilizados para estantes. Considerava a leitura uma carícia. Uma forma de educação sentimental. Todas as pessoas letradas seriam bem educadas. Cansado de enfrentar os problemas práticos, resolveu casar-se. O casamento abriu a caixa de Pandora. Conheceu um lado desconhecido da vida e o descompasso entre a realidade literária e a prática. Resolveu imolar-se juntamente com sua paixão.
Por que o homem do Povo do Livro não queima a sua biblioteca?


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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Outubro 31, 2008, 18:33:26 »

Uma reflexão séria. De facto, fazer alguém ganhar gosto pela leitura depende do que lhes damos a "provar".
Mas imolar-se com a sua biblioteca é que não!
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Goretidias

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Tim_booth
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Queria escrever à velocidade com que penso.


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« Responder #2 em: Outubro 31, 2008, 20:07:50 »

Belíssimo conto Djabal: uma biblioteca vista por uma lâmpada. Ainda por cima o meu fascínio por bibliotecas está a crescer cada vez mais, ainda ontem estive numa visita de três horas, guiada, à biblioteca cá da Faculdade, a conhecer os cantos e recantos e os livros mais valiosos. Peguei em obras com séculos, senti-lhes o cheiro e o poder. Nem de propósito este conto. Ainda para mais, ainda ontem tive uma ideia para uma história, à volta de livros e leitores, posso adiantar que o título, ou a premissa essencial, será algo do género O homem que leu até à morte. Ainda nada está escrito, mas este fim-de-semana arranjarei tempo com certeza.

Tudo isto para dizer brilhante, absolutamente brilhante Djabal.

Cheers
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Laura
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« Responder #3 em: Novembro 02, 2008, 17:23:19 »

Li Le Clezio, O Caçador de Tesouros. Também se chamava Laura, a personagem. Adorei o livro. Le Clezio é muito intenso e apreciei sobremaneira a sua interpretação do feminino. Quanto ao seu texto, adorei a maneira como nos transportou para dentro dessa lâmpada e nos fez olhar em redor, pelos seus filamentos e escutar, pela sua memória.
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Experimentar é diferente de ver, é saber sem compreender. Mas estou livre de todas as infâmias que ouço existirem fora daqui.
A tranquilidade de um convento, quase.
Abraço,
Laura
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.


« Responder #4 em: Novembro 03, 2008, 16:20:15 »

Dá vontade de ficar a viajar numa biblioteca. Fantástico, Djabal!
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Sandra Fonseca
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« Responder #5 em: Novembro 03, 2008, 17:21:17 »

"Qual o valor das coisas? Qual o valor das idéias?
As coisas são fascinantes. Todas tendem a permanecer. A permanência do homem se dá pela destruição das coisas. O fascínio do destruir, de apagar, do recomeçar."

Aqui está a essência deste maravilhoso texto:o valor das coisas e das idéias. Uma lâmpada a que se atribui o poder e o valor das idéias. A metáfora é tão forte que passa-se a ver pela perspectiva da lâmpada. Perfeito!
Abraço.
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
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Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa quinta para todos.
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Boa noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Bom domingo para todos.
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