[Parte I aqui]Pára de olhar para mim, velho caquético do espelho. Os teus belos olhos escondidos nas pregas da idade são tortura. Verdadeira tortura, como a chinesa, a russa e a do sono tão usada em tempos que já passaram no orgulhoso e mui católico solo lusitano. Essa pele pejada de manchas mais parece um velho cobertor bexiguento e já nem consegues sequer segurar o teu próprio braço acima do peito. És patético, meu velho velho. És patético. RidÃculo. Enoja-me olhar para esse corpo que trazes amarrado aos ossos. Para de me imitar os movimentos, velho espelhado. Julgas-te engraçado assim, tipo macaco de cópia? Sentes-te bem a gozar comigo, pobre homem esquecido no tempo? Quem estou eu a enganar, como se conseguisse fugir à s leis da fÃsica e ignorar o reflexo real reflectido no espelho e este reflectido nos meus olhos, outrora belos, agora escondidos. Vou desligar a luz, vou sair desta casa de banho mÃnima, vou para o meu quarto fingir que durmo. Já quando era novo não dormia as noites, não vai ser agora que o vou começar a fazer. Tantas jovens noites passei de papo para o ar a estudar os tectos que me cobriam até ao pormenor mais pequeno. Tornei-me perito em tectos e coberturas e um falhado em sonhos. Mexam-se joelhos carregados de caruncho, levem este velho até à pequena cama que não chega para mim, levem-me até à cama onde vou passar mais uma noite sozinho, acordado ou num sono dessonhado.
E no entanto as minhas pernas não me obedecem, as minhas mãos não se esticam o suficiente para chegar ao interruptor e os meus olhos recusam-se a desviar do meu eu reflectido. Não é nada de saúde, fÃsica pelo menos, os meus membros ainda são capazes de obedecer perfeitamente à s ordens cerebrais, lentamente, é certo. Isto é antes o nojo que tenho de mim mesmo, agora, que não me deixa despregar da minha imagem. Imagem, sempre quis ser mais do que uma imagem, sempre sobrevalorizei o intelecto e deleguei a aparência para os pobres de espÃrito. E agora olha para mim, a chorar porque em tempos ainda conseguia olhar para mim com orgulho e agora apenas com nojo. É normal um homem chegar à recta final de si e perceber que não é mais o homem que foi em tempos?
Finalmente deixei-me desligar a luz. AlÃvio. Já não aguentava olhar mais para este espelho envelhecido. É o espelho que é velho, não sou eu. É o espelho que tem os movimentos entorpecidos, não sou eu. É o espelho que me mete asco, não sou eu. Mas não é o espelho que sente as dores do movimento difÃcil, não é o espelho que se queixa da frieza dos lençóis, não é o espelho que está a chorar lágrimas de velho enquanto se tapa e treme por mais uma noite sem sentido, à espera de mais uma manhã sem objectivo que precede um outro dia sem esperança. Não, esse sou eu, disso não tenho dúvidas, pois se o espelho pode deturpar a maneira como me vejo, nada se entrepõe entre mim e aquilo que sinto.
Até podia fechar os olhos, mas para quê? Até podia tentar sonhar, mas com o quê? Estou velho demais para sonhos, estou velho demais para a escuridão de um olho fechado, estou velho demais para estar velho. Se dependesse de mim, apenas da minha vontade e de mais nada, a minha vida terminava aqui. Não, morrer não, não quero morrer. Mas podia simplesmente tomar a vida por acabada, sem morte, simplesmente dizer: “Esta vida não o é mais.†e pronto, estava tudo acabado, deixava de existir sem morrer. Era perfeito. Sem dor, sem lágrimas, sem saudade, sem nada. Eu quero é que a vida se foda, chamar vida a isto que agora é o meu dia-a-dia é uma piada de mau gosto. Isto é velhice, ser velho é não ter vida, é a sala de espera para a consulta da morte. É o limbo da existência, o purgatório dos que ainda não estão lá. Ser velho é horrÃvel, não quero sê-lo mais. Quero fechar os olhos e acordar no dia em que fui mais feliz. Ou no dia em que fui mais triste, não interessa. Nesses dias, vida não era só mais uma palavra e não misturava na mesma frase essa palavra com a outra, aquela de que tenho medo, a morte. Agora parecem irmãs, cada vez que digo vida digo morte. Que se foda a vida e que se foda a morte. Ao menos que a manhã chegue rápido para o novo dia se arrastar vagarosamente e eu repetir tudo outra vez. Ser velho é ter os dias todos iguais.
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E haverá mais...