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Autor Tópico: Yeziat  (Lida 1822 vezes)
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Djabal
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« em: Novembro 24, 2008, 17:34:10 »




Afasto o véu. Sábado. Dia frio, invernal. O sol brilha por entre as nuvens que insistem em escondê-lo. Vento em golfadas fazendo desabar os raros chapéus. Um lugar descampado e frio, um cipreste ali, outro aqui, o campo foi subdivido em vários quadriláteros e esses foram subdivididos em lotes, cujo conjunto lembra na simetria o desenho das colônias de pingüins e albatrozes. Nestas, cada ninho de albatroz é cercado por quatro ninhos de pingüins, formando uma figura uniforme que se repete. Em nossa colônia os ninhos são apropriados ao repouso de uma ou mais pessoas deitadas. Os maiores fazem uso de mármores, ferro, tijolo, areia e cimento. Erigem mementos patéticos. A circulação dos vivos é feita por alamedas e comportam de três a quatro pessoas lado a lado.
Observo um visitante com um andar peculiar. Vem numa seqüência de passos rápidos, muito rápidos que parecem responder a um empurrão e param de súbito. Como se o pé fosse travado de repente, depois o outro. A paralisação sobe pelas pernas, tronco e finalmente a cabeça. O corpo, preso ao chão, ainda balança para frente e para trás. O comando de parar foi muito rápido. Finalmente fica imóvel.  A boca se abre para  receber o contato da lata, que despeja seu líquido. Os olhos, detrás dos óculos, se erguem, elevam e arrastam a cabeça e ambos fazem uma prece, ofuscados pelo sol intermitente. Prece, cerveja, nova caminhada, mesmos movimentos. De costas, percebo ferramentas em seu bolso. Deve ser funcionário do lugar, coveiro.

Sentados numa pedra retangular, cinza: Pérola e Ruud. Quietos, meditativos. No centro da laje, um pacote aberto contendo doces formando pacotinhos quadrados, um maço de flores e um terço. Ela inicia uma conversa.

- Ele gostava tanto de paçoca.  Trago toda semana. Ficamos conversando, relembrando os nossos dias.

- Não sabia que você era católica.

- Eu não sou. Ele era. Nasceu no Rio Grande do Norte. Lá todos são. Querendo ou não. Mas quero fazer as vontades dele. Foi o homem da minha vida. Deixou-me o filho e a ternura de um tempo feliz que agora é passado. Toda semana relembro de tudo, da nossa história de amor. Não rezo, trago o terço para ele. Não gosto do ritual.

- E ele o que diz disso?

- Ele gosta tanto. Sente a proximidade de tudo, nada foi perdido. Apenas as flores restam aqui. Logo depois que eu saio, ele come os docinhos. Ele não gosta de comer na minha frente. Esfarela. Cai.

- O que você anda fazendo?

- Faculdade de ioga. Adoro a filosofia deles. Condiciono o corpo e a mente. O meu tempo vago estudo nutrição. Busco me alimentar melhor. Quero cuidar do corpo, viver mais. Freqüento a academia quatro vezes por semana. Domingo, no parque, pratico ginástica chinesa. Quando consigo férias, viajo. Gosto de ler para pegar no sono. Leio agora uma biografia de Alexandre. Ele tinha um namorado, sabia?

- Era comum esse costume entre os antigos. Nem sei se é certo, atribuir aos gregos. Parece ser um costume muito antigo, ter um menino de acompanhante.

- Que menino, nada, não era um menino. Ele, de fato, estava apaixonado, quase morreu ao perdê-lo. Eles tiveram uma briga.  Ele gostava de ser rei e servo ao mesmo tempo. Digo, na intimidade, sei disso, sinto assim.

- Vamos?

- Sim, eu já terminei. Vamos almoçar? Conheço um lugar novo pra comermos um churrasco uruguaio. Carne de primeira. Não é necessário comer salada.

- Eu procuro não comer carne.  Ela faz mal. Pra mim e pra eles, os animais.
- Bobagem, eles também servem peixes e aves. Ou você só come verde? Eles fazem saladas, por lá.

- Prefiro apenas salada.

- Eu havia combinado almoçar com Yeziat, você se importa de nos acompanhar?

- Não. Claro que não.

Ao se encaminhar para a saída, Ruud observou o rosto de Pérola. Algo estava errado e chamava sua atenção. Aquela pele muito branca estava com alguns hematomas no rosto e no colo. Apesar da tentativa de camuflá-los com maquiagem, os lobinhos eram visíveis. Deixavam o rosto disforme.

- O que aconteceu?

- Não é nada. Acidente. Nada demais.

(olhar inquisitivo) (olhos marejados) (olhar interrogador)

Yeziat saiu comigo ontem à noite. Jantamos, bebemos, nos beijamos. Ficamos. Ele é uma pessoa muito diferente. Não gosta de limites. Encantador, atroz, furioso, misterioso. Não se preocupa com mais nada além do seu próprio prazer. Violento. Rústico. Intenso. Isso tudo é muito estranho. Mas tive uma sensação - indescritível e inédita. No início fiquei apavorada. Resisti como pude. Medo. Percebi não ser esse o melhor comportamento e me entreguei. Ele é assim, exigente, franco, poucas palavras, conversa não falando. Faz. Encontrei um homem que não abdica da iniciativa. Naquela entrega o sentimento se formou em mim vindo de fora e me transformou.  Modificou o mundo a partir daqui, e a partir de mim mesma; e, portanto, mesmo que isso contradiga todos os conceitos e vá ao encontro dos preconceitos, ele existe.  Ao mesmo tempo aqui dentro e lá fora. Está tão entrelaçado conosco, que a questão do que é interior ou exterior perde todo o sentido.  Eu me tornei outra naquele momento. Outras. Por um minuto dei uma chance ao novo e fui dominada por ele. Eu senti o mal e dele tirei o bem. Dor, amor, são idênticos no prazer.

- Acho melhor, Pérola, eu conversar com ele. Isso não se faz.  Pelo menos não assim. Brutalidade. Não, não. Isso está muito errado. Bater em você desse jeito. Olhe pra você. Você se olhou no espelho?

- Não, por favor, não faça isso. Ontem, depois de me deixar em casa, eu liguei e pedi pra ele: Amanhã é a minha vez. Quero sair de novo. Hoje não; quero ficar quieta, aproveitando o momento. Quero bater também. Vou devolver cada uma dessas marcas.

- Você está preparada para negar essa individualidade – seu rótulo - e se tornar simultaneamente senhora e escrava?  Existirá alguém? Eu percorri muito da trilha e não encontrei. Encontrei apenas pessoas que gostam de posições fixas e irremovíveis. Elas variam e utilizam uma máscara de cada vez numa seqüência lógica e linear. Descobrir e ser duas pessoas ao mesmo tempo. Abre as portas para o ser múltiplo, sem amarras.   As pessoas daqui não vivem muito tempo numa cápsula espacial. A gravidade nos pregou uma peça. Ao ficarmos soltos um tempo, queremos voltar. Voltar ao centro. Ficamos tontos com essa troca constante e nos aferramos à lógica. Perdemos pouco a pouco a nossa leveza. Seremos brevemente aquele Napoleão de Hospício em busca do seu filho. Bem, posso acrescentar que sou neto de Josefina.

- Vivi um amor romântico e, em parte,  realizado. Habituei-me a pegar sempre a primeira peça de roupa da gaveta pra meu marido. Todo o dia pegava a que estava em cima. Agora, a gaveta foi inteiramente mexida. Escolhi outra peça de roupa. Outra cor. Forma. Você me diz que existem outras gavetas, não havia percebido. Elas estão lá bem na minha frente. Não existe ordem? Pensava estar satisfeita, não estou. A partir de um momento, outro mundo de abriu diante de mim. Primeiro como ameaça e abismo e agora como atração e prazer. Quero ser uma espiã. Uma agente dupla. Escolher o melhor entre dois mundos. Se você me diz que existem outros. Quero vivê-los. Se conseguir ao mesmo tempo, melhor. Se for considerada traidora, serei morta. Eu já estava mesmo, não o sabia. Quero conversar comigo mesma.

Chegaram ao portão. As nuvens fugiram.

Do lado de fora: um sujeito emaciado, com cabelos compridos formando ondas sujas batendo no corpo margem, vestindo um paletó e calça escuros, de corte elegante, sapatos faiscantes.  Sua camisa, muito folgada no colarinho, por sua vez abraçado por gravatas de nós largos e o todo colorido. O olhar obscurecia o que fitava. O semblante cinza e revolto como seus cabelos. Mãos muito longas e finas mostravam todos os tendões, um feixe deles finalizando em unhas compridas e afiadas. Abriu um sorriso amplo, simpático e calmo. Saudou:

- Vamos ter companhia para o almoço?

- Não, desculpem. Havia me esquecido de um compromisso. Não posso.

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damasco
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« Responder #1 em: Novembro 25, 2008, 15:33:05 »

Bem, esse vampiro é arrepiante. Melhor ter outro compromisso. Smiley
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Goreti Dias
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« Responder #2 em: Novembro 29, 2008, 00:08:44 »

Eu que adoro vampiros, adorei o texto!
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Goretidias

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marcopintoc
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« Responder #3 em: Novembro 29, 2008, 00:30:01 »

Bom conto . Grande Vampiro !
Abraço
Marco
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
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Boa noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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