Não se percebeu ainda
que o instinto serve
melhor aos animais do que
a razão serve ao homem.
José Saramago
Posso perceber, sim. Essa reflexão me persegue ao longo dos últimos e muitos dias. O primeiro a despertar a minha atenção foi meu cão. Rex. Ele perambula pela casa toda. De quando em quando, pega algo que cai da mesa e corre para um canto para comer, rapidamente. A agilidade é a sua arma. Uma delas. A outra é o rosnar. Quando pega algo não comestÃvel, um brinquedo, um utensÃlio qualquer, fica mordendo, mascando. Assim que alguém se aproxima, ele rosna e faz aquela careta. Normalmente, ela é percebida como raiva ou ameaça. E faz com que o candidato à posse desista da ação. Mas eu percebo que a atitude não é agressiva e, sim, de medo. Testei. Fui lá, não dei bola ao resmungo e tirei o objeto de sua boca. Pronto. Não sei exatamente como aconteceu. Mas pareceu um jogo de pôquer. Rosnado foi uma trinca de sete, e o meu gesto foi uma trinca de valetes. Fui o único que apostei até agora.
Hoje, li Rubem Braga e a história de um pára-quedista brasileiro atirado de um avião aliado no front italiano da Segunda Grande Guerra. Ele caiu exatamente em cima das linhas alemãs. O soldado foi objeto de artilharia pesada, mas não foi ferido. Mas o pára-quedas se avariou a ponto dele não aterrissar, mas cair violentamente, quebrando os pés. CaÃdo, sem movimento, foi abordado pelos alemães. Explicou sua situação e seria conduzido para um hospital militar, quando aparecem dois italianos de camisa negra sob a gabardine e repetem as mesmas perguntas. Eles não acreditam que o soldado seja brasileiro, apesar da identificação, colocam a sua pistola na cabeça do infeliz, para executá-lo ali mesmo. Apenas a intervenção salvadora dos alemães evitou o assassinato. Não houve diálogo que os convencesse os fascistas do contrário.
Lembro ainda de uma conversa retratada no livro de contos de um irlandês. A conversa entre um patrão e um empregado. Aquele, racional e exigente, em busca de lucros e eficiência. O outro, um bom homem, sem muitas expectativas, quase cÃnico, vivia apenas para ganhar o dia. Pretendia sempre ter suas três refeições diárias. Claro, bebia um pouco. Às vezes, durante o expediente. Mas sempre discreto, a não ser pelo nariz vermelho além da conta. Essa tática foi percebida pelo diligente patrão, que, então, planejou uma ação exemplar. Numa das saÃdas do empregado, ficou esperando a volta na sala, com os outros empregados. Assim que voltou, aconteceu o seguinte diálogo:
- Boa tarde Sr. M.
- Boa tarde, patrão.
- O senhor andou bebendo?
- Sim, desci uns minutinhos para beber uma cerveja. Quando dei por conta, havia bebido duas ou três.
- O senhor pensa que sou algum idiota?
- Bem, posso dizer que não sou a melhor pessoa, nesse momento, para lhe responder essa questão.
(risos generalizados e arrastar de cadeiras)
Acrescento a titulo de informação, que o empregado ficou desempregado minutos depois.
Um filho, após ouvir a explicação razoável dada pelo pai, de que não poderia mais arcar com as despesas da estada dele na América, para estudar e jogar pólo:
- Ó pai, esse problema não é meu. Te vira.
Assim funciona o diálogo nos dias correntes. Alguém toma a palavra e inicia o assunto. Depois de algum tempo, ou de algum silêncio repentino, a palavra é retomada por outro, que a utiliza para contar a sua versão daquela mesma história ignorando, o que se disse antes. Abre um parêntese, com a forma de conversa. Aquele primeiro espera o fim da história, ou outro silêncio dubitativo, e reinicia a narrativa do ponto onde parara antes. Assim, caminham paralelamente até o final de cada versão. Se alguém se atreve a fazer um resumo, tentando encontrar pontos de contato entre as duas versões, perde sua condição de isento. Logo se formam dois grupos, e ficam vociferando entre si, coisas absolutamente inúteis, do ponto de vista do entendimento. Discordam sob os mesmos pontos de vista. Tentam ganhar a discussão pelo apoio da maioria.
Outra solução, adotada é mudar de assunto e pontificar sobre o último filme do Woody Allen. Ele é sucesso de crÃtica e de público. Se a platéia ainda não assistiu e o assunto não colou, a melhor maneira de conseguir o interesse do público é contar a história da venda do apartamento dele em Nova Iorque. Conta-se que pretendia vendê-lo e chamou o corretor, pedindo uma avaliação. Ao saber do valor de mercado, disse o seguinte. “Dobre o preço, e pode revelar que o apartamento é meuâ€. Tiro e queda. O apartamento foi vendido em pouco tempo, pelo preço pretendido.
Outro tópico interessante para iniciar um diálogo é falar do conflito palestino-israelense. É muito difÃcil estabelecer uma conversa entre ambos, por aqui. Mesmo para ilustração. Ou conversamos com os judeus ou com os árabes. Juntos a conversa se dilui, fica baseada em banalidades irreais ou juras de amor eterno. Quando estamos com uns ou com outros, o papo fica bem mais interessante. Um dos que participei, falava da polÃtica de ocupação israelense, nos territórios palestinos, promovida pelo primeiro ministro do governo liderado pelo partido Likud (União). Falava-se também do argumento de Amóz Oz a favor dos palestinos. Estes tinham a disposição sete vezes menos água que aqueles. “É bem razoável se esperar conflitos diante de fatos como essesâ€. Disse alguém. Alguém retrucou “Claro que sim, esses dois são, claramente, anti-semitasâ€.
Geralmente a tentativa mais eficiente para fracassar qualquer tentativa de conversa é relatar o episódio da marcha do sal. A polÃtica de não-violência de Gandhi. Como ele conversou com milhões de compatriotas, por meio de uma simples marcha. Um diálogo feito de silêncio, onde as pessoas simplesmente ao acompanhar seu lÃder, conseguiram criar um laço indestrutÃvel até a obtenção de seu objetivo. Nesse exato momento, a conversa se congela e você passa a ser visto como um lunático, ou alguém totalmente destituÃdo de razão. “Isso não se aplica mais aos dias de hoje. O mundo mudouâ€.
O diálogo, visto como uma conversa entre presentes, onde um fala e espera a resposta do outro, retoma a conversa daquele ponto, e continua explorando o assunto até se encontrar um denominador comum, está em extinção. Todos falam como se estivessem em comÃcio. Para conseguir adeptos. Estamos nos acostumando a desqualificar o interlocutor por sua posição social, polÃtica ou preferência sexual. Ao defender o direito das lésbicas, nós nos tornamos uma delas. Ao defender as diferenças entre homens e mulheres, somos machistas. Parece que caminhamos para uma uniformização perigosa dos pontos de vistas. A paz construÃda sobre o alicerce da resolução dos conflitos está com seus dias contados. Até na América, terra das contradições, e da melhor maneira de resolvê-las, caminha pela trilha do que é eficiente-dizer-para-convencer-o-outro.
Hoje o diálogo se faz entre ausentes. A revista, por exemplo, diz alguma coisa, sobre qualquer assunto e espera a resposta dos seus leitores. Através das assinaturas, da divulgação, do entusiasmo com que se discutem os pontos abordados. Mas não se ouve a resposta do outro lado.
Outro dia, ouvi ou li de alguém (Alberto Manguel?) que a escrita é um diálogo. Os escritores nunca têm, a rigor, nada de novo para comunicar, apenas têm outra maneira, mais agradável, mais instigante, mais original de encarar o mesmo problema. E, para esse diálogo, utiliza as suas referências, suas leituras e reflexões cruzadas.
“A suprema questão sobre uma obra de arte é saber qual a profundidade de vida de onde emerge†afirmou James Joyce.
As referências podem ser extraordinárias, majestosas e clarividentes, exigindo, portanto, do humilde e desavisado leitor uma capacidade de resposta e conhecimento que não teve tempo ainda de adquirir, ou uma profundidade que ele ainda não habitou.
Talvez esse seja o maior problema dos autores. Eles, além de criativos, são dotados de um conhecimento, do qual perdemos referências. Elas nos remetem a galáxias distantes das conhecidas.
Assim a leitura é sempre essa tentativa de diálogo. Às vezes pela forma, às vezes pelo conteúdo ou pelos dois; fica a fama de elitista. Mas não é o caso. Asseguro-lhes: a leitura exige paciência e tempo, coisas que os tempos de hoje não prestigiam muito. Tudo sempre começa pelo zero.
Diante de tantas premências a que submetemos o diálogo, ele poderá desaparecer, por inútil. É que consigo reconhecer nos dias atuais. A sua ineficácia como troca de idéias e valores. Eles não existem para trocas ou enriquecimento. A intolerância os atacou de morte.
Escolho ainda duas histórias que podem ser instigantes para o raciocÃnio sobre o diálogo. A primeira é a da Mandrágora.
Eu sabia que a orquÃdea era considerada quase humana. Como vegetal, o seu desenvolvimento havia atingido o máximo. Um pouco mais desenvolvida e se tornaria animal. Outra planta havia antes habitado o imaginário dos homens, a mandrágora. A sua principal caracterÃstica, tornando-a limÃtrofe ao reino animal é a de gritar quando a arrancada do solo. Esse gesto significava correr o risco de passar por terrÃveis calamidades. Essas histórias foram contadas por Shakespeare, Lúcio Columela, Alberto Magno e Flávio Josefo, narrada por Borges em “O Livro dos Seres Imagináriosâ€.
Cláudio Magris, em “Microcosmos†conta das sucessivas invasões ocorridas na região hoje conhecida por Trieste. E, narrando sobre elas, sabemos dos hábitos dos turcos, dos austrÃacos, dos alemães e italianos. Dos costumes que deixaram, dos mais diversos sÃmbolos. Do perigo que já foi utilizar uma simples tulipa na lapela. A poesia da flor foi utilizada como sinal do poder dos otomanos. E naquele mar de histórias, uma chamou muito a minha atenção. Do zelador (Leon Sauta) de um castelo do prÃncipe Schönburg-Waldenburg, situado na região do Nevoso ou Sneznik-Kozarisce. O palácio passou incólume através de todos os vitoriosos da hora. Não foi destruÃdo pelos alemães, pelos partisans ou pelos italianos pelo seu argumento. “Não é necessário atear fogo em tudo, afinal de contas a propriedade agora é sua para sempre. É uma bobagem a sua destruição, entre e usufrua dele.â€
Queremos arrancar a planta, correndo os riscos das calamidades previstas pelos sábios antigos, ou seremos ainda adeptos de Leon que acreditou no poder de construção das palavras?