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Autor Tópico: A fotografia  (Lida 1521 vezes)
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Pedro Ventura
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« em: Dezembro 07, 2008, 11:16:00 »

I

Esta seria uma história digna de figurar a primeira página de qualquer jornal ou de abrir um noticiário das oito. É uma história de violência, de ternura, de investigadores e criminosos, e de uma fotografia surreal que no ano de 1998, numa pacata aldeia em Trás-os-Montes perto de Vila Real, onde a vida decorria morosamente, deu muito que falar entre os provincianos do lugarejo e que faria correr, com toda a certeza, muita tinta entre os citadinos que se encarregam de dar as noticias ao mundo, se este não passasse somente de um acontecimento rural, como tantos outros que ficam arrecadados nas memórias do vulgo. Mas, para a contarmos, temos de recuar uns anos no tempo e reviver alguma da história de vida do casal António e Benedita Candeias, as nossas personagens principais, antes do ano em que o insólito e trágico acontecimento decorreu.
António e Benedita Candeias conheceram-se em criança, na escola que ambos frequentavam. António era mais velho cinco anos, todavia cursava a mesma classe que Benedita devido aos frequentes chumbos que tinha. Estes percalços estudantis, não se põe isso aqui em causa, jamais se deveram às suas capacidades de assimilação das matérias leccionadas, mas sim por razões extra-escolares. Nunca fora fácil para ele conciliar as prelecções da professora Deolinda, mulher solteira, rígida, de sorriso difícil, e de suportar as suas reguadas, com a ajuda, que com a sua tenra idade, tinha de dar aos pais, ora na guarda das ovelhas, de pés descalços e gretados pelos montes íngremes, silenciosos e solitários, com a sacola feita de trapos com uma côdea de pão de milho lá dentro e o cantil da água, ora nos extensos campos de cultivo que lhe faziam calejar as mãos da enxada e fustigar a pele com o sol que lhe batia de chapa no corpo. Cedo se fez varão de barba rija, cedo trocou o lápis pelo cajado e pela sachola. A terra converteu-o num homem de busto largo, músculos salientes e umas mãos enormes e firmes que, quando imprimiam pujança no que quer que fosse, mormente mãos de homens, pareciam ter a força de mil alicates. Que digam aqueles que o desafiavam a disputar o braço de ferro, com o intuito de pagar uma rodada no café da D. Fortunata que quase ensurdecera com o ruído dos matraquilhos e com a algaraviada do estabelecimento. Não era bem um café, por assim dizer. A casa que a D. Fortunata mantinha aberta, tanto tinha de café como de mercearia, de taberna ou drogaria. De tudo se vendia. Tachos, esfregões, lâminas de barbear, sabão azul e branco, bebidas, mercearia, etc. Era o único lugar onde os machos da aldeia se reuniam para trocar uma partida de sueca ou de dominó e onde podiam proferir as suas palavras e trejeitos viris, beber as suas cervejas e copos de três e debicar tremoços e amendoins. Mas no meio daquele corpanzil, acima das bochechas róseas, sobressaíam uns ternos olhos azuis que deixavam as moças do lugar de água na boca e crispadas por não serem as eleitas do seu coração.
A falta de pão à mesa assim o exigia, e nessas alturas já se sabe, qual escola qual quê, labuta é o que é preciso. Ainda assim, a esforço, conseguiu findar a quarta classe, para orgulho dos seus pais.
Já Benedita, mulher esguia de longos cabelos negros, olhos amendoados e expressão inocente, conseguiu concluir a quarta classe, sem quaisquer chumbos. Sempre soubera, de uma forma prodigiosa, gerir o tempo que tinha. Depois da escola, ao tornar a casa, recordava as incumbências que a mãe lhe ditava ainda de madrugada, ao cantarolar do galo Elias, como lá em casa lhe apelidavam, agarrava-se ao cesto de roupa suja, equilibrava-o na cabeça feita mulher grande em corpo franzino e ia até ao lavadouro no centro da aldeia, perto do largo do coreto, onde passava algumas horas a esfregar as vestimentas da família com sabão azul e branco, enquanto tagarelava com as mulheres mais velhas, já casadas e mães algumas já avós e viúvas outras. No que diz respeito a trabalho, Benedita também se fez mulher precocemente. No desmaiar da tarde tornava a casa, derreada e com mãos doídas de tanta esfregação. Contudo, ainda descobria dentro de si alguma força de vontade para se agarrar aos livros e aos deveres que a professora Deolinda raramente se olvidava de mandar para casa. Apesar da sua falta de brandura e tolerância esta docente, sabedora do seu ofício, tinha como preocupação principal a de que, se os conhecimentos fossem os indispensáveis, os educandos saltassem de classe. Ao invés de António, Benedita jamais conhecera as bordoadas da professora Deolinda que falecera tão sozinha como vivera.
Como quase todos os catraios da aldeia, os estudos de António e Benedita Candeias não puderam ir mais além, ainda assim, bem se podiam orgulhar de não fazerem parte da ampla percentagem de aldeões iletrados. O futuro da maior parte deles já estava esboçado à nascença. É da terra que vem o sustento, então é nela que têm de trabalhar. Esta era uma espécie de aforismo que vigorava nas mentalidades dos progenitores de outrora, até haver o primeiro exemplo de afoiteza de alguém que deixa os pais e a terra que os viu medrar e, na esperança de uma vida melhor, sem enxada nem foice, rumam à grande Lisboa, atravessam as fronteiras de acesso à vizinha Europa, cruzam o Atlântico e atracam no Brasil, Estados Unidos da América ou Canadá. E bastou esse primeiro exemplo, e a corroboração na primeira carta enviada, de que, sim senhor aqui trabalha-se mas a vida é menos dura, e tem outros deleites, para que tantos outros seguissem o mesmo destino. E assim enceta a primeira fase de êxodo na pequena aldeola que António e Benedita Candeias se denegaram a abandonar, que dali só para debaixo dos torrões, e nela se enamoraram e trocaram as primeiras cartas de amor, que escondiam debaixo de uma pedra dentro do majestoso castanheiro de tronco oco (por vezes servia de abrigo quando chovia, cabiam lá dentro umas seis pessoas em pé e eram preciso muitos braços para o conseguir abraçar) que envelhecia por detrás da igreja onde anos mais tarde, já não conseguindo camuflar a sua ligação, se ajoelharam e consumaram o enlace, as juras de amor eterno, perante o altar de Cristo, perante familiares e amigos, perante o fotografo alugado que viera da vila montado no seu jumento pela estrada de terra batida, perante a chusma de mirones que querem ver a alva noiva, e perante o padre Abílio, ainda hoje vivo, ainda hoje a evocar a palavra do Senhor, que conduzia gaudiosamente a cerimónia com o seu peculiar brilho nos olhos aquando um casal da povoação, a quem deitara a água benta, unia, literalmente, os trapinhos. Rezava uma lenda da aldeia, que aquela árvore de ouriços hirsutos tinha mais de seiscentos anos, que vários homens e mulheres se finaram por quererem se apropriar dela, e que, inexplicavelmente, da noite para o dia, deixara de dar fruto como uma espécie de represália a todos aqueles que viviam embriagados de egoísmo e avidez. Assim, até aos dias de hoje, e como nunca deixara de ser, aquele castanheiro, a sua exuberante sombra e o abrigo das suas entranhas, pertence a todo o povoado e, como já se referiu, até serviu de marco de correio para a troca de palavras de cariz afectuoso.
O casal Candeias era desmesuradamente apaixonado na adolescência e assim continuaram ao longo da vida que partilharam debaixo do mesmo tecto, que compraram com a ajuda de alguns familiares e com as oferendas do casório humilde. Humilde foi também a boda. A ementa consistia em cozido à portuguesa, canja de galinha e para pospasto arroz doce que deixava a garotada a lamber os dedos.
A casa fora negociada por um bom preço, a um endinheirado herdeiro da metrópole. Um filho único definitivamente desancorado das raízes paternas. Era uma casa rural tipicamente transmontana, com paredes em granito e com o tecto atravessado por grandes traves de madeira, três quartos com janelas para três frentes da casa, de madeira eram também as paredes que separavam as divisões, uma lareira para as rigorosas noites de Inverno, um forno a lenha para cozer o pão e o folar tradicional, grande parte do recheio mobiliário incluído, algumas loiças, até um faqueiro banhado a prata que o vendedor ignorava a sua existência, e, visto ficar num declive, ainda tinha no andar térreo, um lagar para a pisa da uva morangueira, um espaço para criar um ou dois suínos que dariam bons presuntos e enchidos, coelhos, e algumas aves galináceas, que poriam ovos de gema verdadeiramente amarela e que dariam uma cor muito especial aos bolos que ali iriam ser cozinhados quando sobejava algum tempo à atarefada mulher da casa. Ainda tinha também, um bom naco de terreno de cultivo adjacente, todo ele murado à volta com a pedra granítica, uma mina de água rodeada de amoreiras vermelhas, que, à falta de água de cano, servia para encher as bilhas de barro que sustentava todas as tarefas domésticas, higiénicas e agrícolas, e tinha ainda duas das mais frutuosas nogueiras daquela plaga numa das extremidades da parcela, junto ao mural. Um verdadeiro achado, se tivermos em conta a qualidade/preço. A habitação tinha dois relevantes contras. O primeiro, é que ficava isolada da povoação. O cordão umbilical que ligava a aldeia à casa era um caminho de areia e pedras, cerca de quinhentos metros, onde os rechinantes carros de bois passavam com o tilintar das suas campanas na ida para a lavoura. O segundo é que a casa era em grande parte rodeada por um extenso pinheiral que subia encosta acima e onde só se sentia vida humana sazonalmente, aquando os resineiros desencarrascavam os pinheiros e colocavam as bicas e os púcaros que recebiam a resina que brotava da incisura.
Após o lusco-fusco, a vida do pinheiral era dominada pela fauna que ali existia. Cobras lagartos, mochos, corujas, coelhos, toupeiras, porcos-espinho, porcos-montês, raposas e lobos, os mais temíveis quadrúpedes que certas noites António e Benedita Candeias sentiam à porta. Desciam do pinheiral a uivar, com o seu passo lesto e mudo, olhos oblíquos e perscrutadores, beiças ferozmente arreganhadas e salivantes, dentes afiados, e rondavam a casa, sedentos de sangue e carne quente, à cata de algum animal de penas ou de lã, que tivesse ficado solto por descuido e que fosse insuficientemente expedito para se esquivar à chacina. Ainda cachopo sucedeu a António Candeias um episódio, um frente a frente, com estes canídeos selvagens que mais tarde havia de ser contado às suas filhas. Numa das suas idas para os montes com o rebanho de ovelhas de seu pai, António Candeias apanhou um valente susto. Enquanto estava distraído sentado num pedregulho, ao seu lado o bordão arrimado, a comer a sua côdea e a matar a secura, sem dar fé, um lobo aproximou-se pela calada, a furta-passo, e abocanhou um anho que se encontrava a menos de um metro de si. António ficou de cabelos em pé. Pelas fontes corriam-lhe suores frios de medo e o coração a latejava sem freio. O pequeno pastor bem encheu o pulmão e abriu a boca para bradar bem alto, mas o grito não saiu. Na aldeia contava-se que quem teve experiências de perto com lobos, jamais alguém conseguiu soltar o grito. O susto abafava-o, deixava-o suspenso. Mais tarde, já homem de família, com uma casa para proteger, António comprou uma caçadeira (haviam de se contar pelos dedos aqueles que não tivessem uma atrás da porta) em segunda mão com os patacos que foi amealhando durante alguns meses, e essas intimidações animalescas cessaram. Bastou ter deitado por terra (como se fosse um ajuste de contas do episódio remoto) um ou dois bichos da alcateia, para que estes ganhassem medo ao chumbo e não mais se aventurassem por aquelas bandas. Os uivos passaram a ouvir-se lá longe, nas trevas do denso e sussurrante pinheiral. A aquisição da arma e o gosto pelo disparo transformou António Candeias num exímio caçador de perdizes, gaios, rolas, melros, pombos, coelhos, que eram trazidos à sua mão larga pelo rafeiro, o primeiro que teve, que o acompanhava nas suas incursões pelo mato e que vigilava a casa quando a obscuridade da noite obrigava a recolher.
E foi assim, nestas condições, que o casal Candeias encetou a sua jornada conjugal, que durou mais de quarenta anos. Uma vida.
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Dezembro 07, 2008, 12:29:08 »

Uma vida...
Um conto repleto de boas descrições, reais em muitos lugarejos, ontem e hoje ainda.
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Goretidias

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Nas asas do sonho, escrevo...


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« Responder #2 em: Dezembro 08, 2008, 00:10:31 »

Um conto muito bom e bem escrito a merecer continuação...

Gostei de ler
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Bom domingo para todos.
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