Deixem-me falar-vos de uma mulher que um dia conheci. Agora, não sei que é feito dela, se morreu ou está viva, não sei. Marcou-me aquele ano, marcou-me ela. Não era especialmente bonita mas, ao seu modo, encantadora. O seu olhar era penetrante, respirava cultura, boémia, inteligência.
Adorava discutir com ela. Era uma pessoa viva, apaixonada, confiante. Dava gosto contrariá-la, dava gosto ser provado errado. Raras eram as vezes que ganhava alguma discussão, não a conseguia impressionar com nenhum artista obscuro, ela arranjava sempre outro mais desconhecido e, invariavelmente, mais genial.
Como a conheci? Irrelevante. Asseguro-vos que a conheci. Muito bem, if you know what I mean. O facto de eu ser casado não impediu que, ainda que por uns segundos, fosse feliz ao lado dela. Estar deitado ao lado dela, cobertos de nada, suados, rindo só porque sabia bem rir. Eu era feliz. Ela, também.
Porque é que me estou a lembrar dela agora? Porque é Natal, lembro-me sempre dela no Natal. A última vez que a vi foi numa véspera de Natal, há mais anos do que aqueles que consigo contar. Deixei-a. Sabia que tinha de o fazer. Sou cruel, eu sei. Seco, disse-lhe que “tinha de acabarâ€. E tinha. E acabou. E acabou comigo, com ela, com a minha mulher.
Nunca mais esquecerei a expressão na cara dela. Não era dor, não era tristeza. Não era nada, na verdade. Era desprezo. Simples desprezo, senti-me pior que uma barata, mais nojento que uma ratazana. Em casa dela, deixei-a em casa dela, quando já ela me esperava na cama com um copo de vinho e um disco de jazz. Eu esperava-a com desculpas esfarrapadas e um nó na garganta. Que belo presente de Natal que lhe dei.
Nunca mais consegui cear a ceia da consoada em condições. É suposto ser uma festa familiar, a minha famÃlia estava destruÃda. E eu destruÃdo também. Eles “Feliz Natal†e eu só pensava nela. Nela, em casa, a desprezar-me.
Já disse que ela não tinha ninguém? Ela não tinha ninguém, não tinha famÃlia, não tinha marido para trair, os pais mortos há incontáveis anos, filha única, o amante era quem lhe era mais próxima. Ela dizia que não, que simplesmente ainda não tinha surgido, mas eu sabia que ela ainda estava sozinha por minha causa. Ou talvez isto não passe de um desejo inconsciente de ser amado pela mulher mais marcante que alguma vez conheci. Ela não tinha ninguém e eu deixei-a na véspera de Natal. Sou um cabrão.
Porque é que os telejornais só mostram os sem abrigo no Natal? E os que, abrigados, choram noite dentro, sem ninguém, ninguém devia passar essa noite sem ninguém. Queria, naquela noite, uma reportagem em casa dela, para ver como ela estava, uma câmara secreta que me mostrasse a asneira que tinha feito.
Fugi, na noite da ceia, do sufoco familiar por uns momentos. Fui até casa dela. Tinha de a ver, não queria ser visto. Espreitei pela janela, eu sei, horrÃvel, mas considerando o que eu já tinha feito não tão mau assim.
A música ouvia-se cá fora. A lareira acesa. Um copo de vinho na mão. Cena de filme. Leonard Cohen, restos de take-out em cima de uma mesa ao lado do sofá. Aquela mulher fascinante com o olhar perdido no fogo. Não chorava. Não se mexia. De vez em quando fechava os olhos. Outras vezes bebia um trago pequeno. Era o perfeito quadro da solidão orgulhosa. Era o perfeito quadro do Natal sozinho.
Pintado por mim.
FIM.
Tim James Booth, Dezembro 2008.