marcopintoc
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« em: Janeiro 06, 2009, 00:41:17 » |
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Adeus Bela. Em silêncio perante esta lápide que demorei uma década e tal para encontrar. Minto. Perante este bocado de matéria fúnebre que deixei os anos carcomer. O musgo, as ramas de plantas que não conheço o nome envolvem a tua última morada. Gosto. Acho que ias gostar também, tem tudo uma ambiência romântica, talvez um pouco gótica. Estou sentado aqui , tão diferente de quando ambos éramos vivos. Sim sou eu. Engordei ,não engordei ? E sim , já não tenho o cabelo a escorrer-me até ao meio das costas. Mas..Mas acredita que sou tão ou mais filho do Demo do que nos tempos em que, nus na serra de Sintra, invocávamos o cornudo em rituais de ácido e perdição. Já lá vão mais de dez anos e só hoje tive coragem de enfrentar o teu sepulcro. Tive medo , muito medo..quando caminhava passo a passo entre lápides e jazigos em direcção a ti , com as almas dos que não encontram o descanso sussurrando-me : - Vem, Vem para mim , Senhor . A cada metro, olhava para o pedaço de terra que o limo cobre e esperava que te erguesses , uma Fénix renascida da minha memória , dos meus desejos mais negros de luxúria , quiçá necrófilos . Ansiava ver a terra explodir e a tua figura, anjo em vestes negras e compridas, invocando-me de novo , para dentro de ti , sem razão ou sentido , unhas rasgando a carne , mandÃbulas irrequietas procurando a jugular para o orgasmo dos sem nome .Porém nada disso sucedeu .Caminhei ignorando as almas penadas , com um gesto de mão insolente dispensei os encantamentos das mais persistentes porque vim aqui por ti . Já ninguém cuida da tua lousa , os teus pais partiram para longe na vergonha , todos os que te amaram morreram de ferro fino atravessando a veia inundada de Ãnfimas tromboses. Só resto eu . E eu reneguei-te, reneguei um passado de vergonha para poder ter que comer, para que os dedos apontados se focassem em outras vergonhas, em outras histórias de Sid e Nancy dos subúrbios. Mas hoje redimo-me. Neste último adeus redimo-me. Como num dos velhos singles tocado a trinta e três rotações os movimentos são rituais, excessivamente cerimoniosos. Entre o tempo real e o meu existe um retardar. Não sei explicar-te bem . Há um filme chamado Matrix , ,mas tu foste antes do o poderes ver , em que há momentos assim. Levanta esse olhar , sai da treva e condenação eterna e vê. Vê a colher, o citrino, ainda ficas molhada ao ver o brilho da agulha ? Ao ver a gota que liberta o último pedaço de oxigénio de dentro do vidro ainda te sentes ansiosa ? Como se um falo do tamanho do universo fosse entrar em ti e levar-te para longe? Os teus olhos do Além, de terras de Belzebu cintilam? Escorre saliva por esses lábios, descarnados e roxos, quando o sangue e o sumo da papoila se cruzam num torvelinho ? É demais? Talvez seja . Sabes amor? Tudo tem sido demais desde então. Estou a sentir as tuas mãos a amarrar o garrote para que a veia palpite e fique bem saliente. Sente ! O êmbolo a entrar , o chuto na alma , recebe-me . Este calor , que vem das entranhas , que cheira à merda de todos os dias passados . Estou a morrer .Estou a morrer , ao pé de ti. Ainda bem .
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