Antonio
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« em: Setembro 29, 2007, 17:47:36 » |
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Nos primeiros dias de Agosto de 1972, com 23 anos e nove contos de rei no bolso (dinheiro emprestado pelo meu pai para fazer face a eventuais despesas não previstas), uma mala pesada e a cabeça carregada de imaginação, voei para Londres onde passei uma noite. Na manhã seguinte, e num dia que não consta dos meus registos, infelizmente, pois esta necessidade de me localizar no tempo e no espaço é quasi doentia, dirigi-me, de táxi, do hotelzinho tipo asilo para indigentes onde pernoitara, para a Liverpool Stress Station onde apanhei o comboio para March Station, duas horas afastada, já no Cambridgeshire. Lá nos esperava (a mim e a muitos outros jovens de todo o mundo) um perÃodo de vinte e dois dias de trabalho no Friday Bridge Agricultural Camp, perto da cidadezinha de Wisbech, uns duzentos quilómetros para norte de Londres. Durante a viagem travei conhecimento com uns portugueses e espanhóis, que viriam a ser meus parceiros habituais durante todo o perÃodo nesse antigo campo de concentração da segunda guerra mundial. Sim, porque os aliados também faziam prisioneiros e tinham de os meter em algum sÃtio. Chegados a March, estava à nossa espera um autocarro que fez várias viagens da estação para o campo para transportar os “trabalhadoresâ€. E uso esta palavra porque se nós, rapaziada jovem, encarava aquilo como um campo de férias onde se podia trabalhar e ganhar algum dinheiro, os responsáveis do Friday Bridge encaravam-nos como mão-de-obra em stock para suprir as necessidades da agricultura e indústria agrÃcola locais. Uma vez no campo, deram-nos um folheto explicativo e uma prelecção. Fiquei logo a saber que tÃnhamos de pagar uma série de coisas. Não gostei! Além da zona de refeitórios, bar e a enorme sala de convÃvio, tudo no edifÃcio central, velho mas restaurado, havia a vasta zona dos dormitórios (que era constituÃda por bangalôs). Uma parte para rapazes e outra para raparigas, separadas por uma rede de arame. Mas rapidamente os mais safados descobriram algumas passagens clandestinas através da cerca. Havia um número elevado de bangalôs (pois os utentes eram duzentos e tal, se a memória não me atraiçoa) e cada um deles tinha umas doze pequenas e desconfortáveis camas. Nada de armários. Umas prateleiras, uma pequena caixa para guardar objectos, uma cadeira para cada um. A roupa ficava dentro da mala ou a arejar na cadeira, sobre a cama ou em cima da bagagem. Luz directa quasi não havia e a indirecta chegava para ler um livro, mas de letras bem gordinhas. Fui colocado num deles juntamente com alguns portugueses, mas também com os espanhóis do comboio e outros tipos de diferentes paÃses. No campo havia predominância de italianos. O raio dos tipos falavam alto e de forma arrogante e faziam uma tal barulheira que, rapidamente, se tornaram os mais detestados. Uma vez, um dos mais parlapatões irritou de tal modo um pacato e gigantesco alemão que este lhe deu um murro na trombeta que o fanfarrão voou, como nos filme. Delirante! Mas havia gente de imensos paÃses. Da Europa, principalmente, mesmo do leste europeu que ainda estava sob o jugo soviético. Orientais também. Japoneses, claro, mas eram poucos. Também brasileiros e de outros paÃses da América Latina. Não me posso esquecer de uma bela morena argentina que tinha o interessante hábito de, durante a noite, escapulir-se para a zona do dormitório dos homens onde metia a cabecita debaixo da roupa da cama dos moços e oralisava um tratamento anti-stress. Entretanto, foi lido e afixado o nome dos “operários†que iriam trabalhar no dia seguinte. Não havia trabalho para todos, diariamente, por isso era preciso ter sorte ou engraxar os responsáveis do campo. Tive sorte. Chamaram logo o Mr. Dias (pronunciaram “daias†tendo eu reclamado, em vão, que era “diasâ€). Lidas as instruções sobre o trabalho do dia seguinte, fomos jantar uma comida horrorosa feita à base de vegetais. Depois, foi a altura de procurar uma miúda para meter conversa e ver o que dava. E não é que estavam já todas engatadas? Havia uma inglesa loira, gorda e com os dentes estragados que me fazia uns olhinhos, mas não me atraÃa muito e continuava esperançado em arranjar uma mais jeitosa. Mas essa noite, como as outras, acabei-a a beber uns copos e a conversar com a malta do costume, a quem se juntaria um grupo de três portuguesas. Na manhã seguinte, bem cedo, lá fui para uma fábrica de enlatados vegetais (nomeadamente favas e ervilhas). Fui colocado junto de um tapete rolante que transportava esses vegetais ainda quentes e fumegantes da cozedura que haviam sofrido previamente em grandes panelões, tendo a tarefa de retirar com a mão os que tivessem um aspecto mais feio ou apodrecido. Coisa simples. Depois andei a transportar de um lado para outro uns bidões de ferro, mas vazios. Aquilo estava a correr bem! Perguntaram quem queria ficar a fazer horas extras. Voluntarizei-me. Em suma: trabalhei doze horas mas ganhei uma boa maquia em libras. E qual não é a minha surpresa quando, ao chegar ao campo, extenuado e cheio de sono, me dizem que estava de novo convocado para o dia seguinte. E para a mesma fábrica. Fui logo dormir. De manhã, bem cedo, tomamos o pequeno-almoço e fomos transportados para o local de trabalho. Mas desta vez não tive tanta sorte: Os supervisors, que podemos traduzir por encarregados (prefiro esta designação à de supervisores), perante as tropas voluntárias, começaram a chamar com um dedo (naquele conhecido movimento repetitivo em que o indicador se dobra parecendo um anzol e se estica, repetidamente) a rapaziada – moças incluÃdas, claro – para as mais diversas tarefas. E não me ligavam nada. Finalmente fizeram-me sinal e um dos mandões levou-me para cima de um palanque localizado mesmo no inÃcio de um dos tapetes rolantes de que já falei atrás. Deram-me uma pá e fiquei à espera. Passados uns minutos, colocaram ao lado do tableau onde eu aguardava, um enorme penelão cheio de favas, fumegante. Tive de tirar os óculos pois ficaram, de imediato, embaciados. E veio a ordem: alimentar, à pazada, o tapete com favas. Mas tinha de ser rápido para que a cobertura da tela transportadora pelas favas fosse contÃnua. Ora reparem bem! Foram escolher para o trabalho mais pesado (era necessária uma força de braços muito grande para bem cumprir a tarefa) um dos mais baixos e leves do grupo. Resultado? Durante uns minutos a tarefa foi cumprida. Mas as forças foram faltando e cada vez era maior o intervalo entre as descargas das sementes. Os supervisors bem protestavam comigo, mas o resultado era cada vez pior. Cheguei ao limite com pequenos montinhos espaçados de uns dois metros. Os chefes vociferavam mas, com o barulho, não percebia nada. Até que tomei uma decisão. Desci do palanque e disse: - I wanna go away! E tentei fazer-lhes ver que havendo uns “operários†com um corpanzil enorme, me deviam colocar noutra actividade. E não é que os pataratas disseram que não? Mandaram-me descansar e comer qualquer coisa para recuperar energias, os burros. Comi uma das horrorosas sandes de tomate e alface que trouxera do campo. Nunca gostei nem gosto de sandes de vegetais. Ao fim de uns minutos puseram-me outra vez em cima do palanque. Nem três minutos lá fiquei. Fui despedido! Pagaram-me o tempo que lá tinha estado, uma ninharia, apanhei uma boleia na estrada e regressei ao campo onde finalmente dormi uma boa soneca. E como os dias foram passando sem ser novamente convocado para trabalhar, juntamente com mais um ou dois ou três portugueses (ou os que quisessem alinhar), fomos percorrendo a região e as cidadezinhas à boleia. Wisbech foi onde nos deslocamos mais vezes. Também era a mais próxima do campo e tinha uns pubs muito engraçados e com uma boa frequência. March, Hunstanton, Harwich e Peterborough foram outros dos destinos onde eu fui gastando a reserva de dinheiro que o meu pai me emprestara. As noites eram passadas em cavaqueiras ou guitarradas bem divertidas, com os portugueses e alguns espanhóis. A malta do costume, afinal. E assim não fui praticando o inglês que era uma das finalidades desta minha permanência no Reino Unido. Finalmente, ao fim de mais de uma semana sem ser escalado para o exterior, apareceu de novo o meu nome na lista dos “trabalhadores†escolhidos. Desta vez o local era um pomar de ameixieiras. A tarefa, trepar à s árvores e encher um enorme cesto de vime com ameixas em bom estado de conservação. Mas totalmente cheio. Depois devÃamos regressar ao local onde estavam os mandões, a colheita era pesada, despejada nuns camiões e partÃamos novamente com o cesto já vazio. E lá fui eu feito capuchinho vermelho de cestinha na mão até uma árvore. Pedi emprestado um escadote, fui enchendo o recipiente, mudei de árvore, mais ameixas lá para dentro e, pronto. Tudo cheio! Quando tentei pegar no cesto para o levar à pesagem, nada! Não tinha força para o sustentar. Pedi ajuda a alguns tipos mas a solidariedade não funcionou. Resolvi, então retirar parte da carga. Quando verifiquei que já tinha músculo para o transportar, lá fui eu. Chegado à pesagem, os encarregados viram o cesto meio vazio (eu via-o meio cheio) e mandaram-me para trás enchê-lo. Voltei ao mesmo local! Novamente as ameixas para dentro e mais pedidos de ajuda, mas sem resultado. Acabei por deixar cesto e fruta e fui-me embora. Pelo menos desta vez não fui despedido. Antecipei-me! E os dias continuaram como tinham sido até ali. Boa vida, umas passeatas e as divertidas noites de música e palavras. Poucos dias antes de me vir embora, fui trabalhar para a fábrica dos enlatados. Dessa vez tudo correu bem e ganhei algum dinheirinho, que bom jeito dava pois as reservas estavam a desaparecer mais depressa do que eu desejaria. Ao fim dos vinte e dois dias programados, fiz a viagem de regresso a Londres. Ainda por lá andei três dias, acompanhado por um dos patrÃcios do campo, até voar para o Porto. Depois da chegada, dos beijos, dos abraços, das lágrimas da mamã, das perguntas e de tudo o mais que é habitual nestas ocasiões, interrogou-me o meu pai: - Chegaste a usar algum do dinheiro que te emprestei? - Gastei-o todo – respondi. - Gastaste os nove contos todos? - Sobraram uns trocos. - Nove contos? Isso é muito dinheiro! – cogitou o meu pai com cara de chateado. E rematou: - Pronto, está bem! Está dada a prenda de formatura! Lixei-me!
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