Begónias de Pedra

[ÂngeloFerrão]

Vai-se dormir
Já estava de saída acabando de chegar
Sim, tenho sono, estive a ver negros hábitos do Almodôvar e quero ir sonhar com um mundo em que as freiras snifem coca
E tenham um leão como criança
É estranho entrarem-nos assim pela casa dentro
Afinal parece que o sono líquido passou
Incenso a arder e leite com mel e café
Estava só a atirar pedras à janela...
A pedra está no outro canto, sim, já entrou, ou pelo menos acho que entrou, está embrulhada num pequeno papel que tem um texto indecifrável
Talvez não consiga colocalizá-la... mas sinto-a com uma estranha força, espera, o texto começa assim:

Fui ver as begónias e estavam a chocar uma alergia, embora não das mais benignas, não há-de vir daí grande mal ao mundo

Ajuda?
Preciso de fazer um esforço para ler mais um pouco, se o papel estiver em boas condições
A mente já esteve em melhores, estabelecer uma relação telepática com um pequeno papel enrolado numa pedra não é das tarefas mais fáceis que já me apareceram
Uma vez estabeleci contacto com um musgo enfermo, mas ainda assim com muito bom cheiro e foi agradável
Mas o papel é de comunicação mais fácil e oferece-se, quase docilmente, à leitura mental
Estou a ver, espera:

Talvez até o mundo não precise das begónias e estas estejam só de passagem, ou a passagem seja estreita e a alergia não consiga chegar à soleira, ou se sinta encurralada em tão dócil flor

E continua:

Desagradável mesmo seria estas begónias levarem consigo uns raros insectos que talvez só cá estejam porque sim, ou porque elas estão, a dita simbiose, não será bem, mas por aí

É na passagem que são eternas
Raras
Mutação de passageiras a definitivas e infinitivas
Raríssimas
Como todas as outras
Mas há mais, até custa a crer que o papel seja tão pequeno:

Efémero, efémero será o voo dos passarocos que se alimentam do néctar begoniano, se estas forem varridas, quais pedras da calçada e há até aquele homem que se alimenta exclusivamente dos bicos destas aves e que também perecerá

E continua ainda:

Mas perecer será igualmente passageiro, pois sem tardança e sem dança, ou com ela, será verme, será flor e flor será begónia, com ou sem alergia
Até ser tarde

Acho que é tudo, já não é preciso procurar a pedra, inúteis pedras quando dispomos de telepatia
É cedo

[Dionísio Dinis]

Não senso é não perceber a idade da flor, da pedra da ideia ou de coisa nenhuma.Em contra-senso, contra-mão e contra tudo o que enfastia, vai este pedaço contaminante de excelsa prosa! 

[ÂngeloFerrão]

Dionísio Dinis,

Um muito obrigado pela observação. Tenho no entanto a mencionar, que todo este contra-senso/mão/corrente/tudo foi escrito com a inestimável contribuição do meu caro amigo João Henriques.

Abraço

[Goreti Dias]

Palavra em flor de prosa ímpar! Belíssima interacção!

[ÂngeloFerrão]

goretidias,

Talvez palavra em flor de pedra tosca...
Obrigado pela leitura e comentário

AF

[marcopintoc]

Boa escrita que já conhecia de outras "bandas". O texto com maior extensão ilustra melhor a sua capacidade criativa que os curtos parágrafos anteriormente publicados.
Abraço
Marco

[ÂngeloFerrão]

marcopintoc, 

Outras paragens... as que inicialmente me espicaçaram a partilhar a escrita. A maior extensão de um texto que escreva poderá ilustrar melhor uma certa criatividade que outros textos, curtos e com curtos parágrafos, como os que tenho vindo a publicar ultimamente (alguns dos quais, aliás, já publicados noutras paragens/bandas), mas a necessidade de partilha é grande e o tempo disponível para escrever diminuto... Obrigado pela leitura e comentário.

Abraço,

AF