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Autor Tópico: Balbucio  (Lida 2237 vezes)
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« em: Janeiro 08, 2010, 20:26:00 »

Pese embora a forma como chegara ao bairro, corriam os fins dos anos sessenta, o senhor Aquilino era estimado e considerado por todos. A fazer jus ao nome, já entrado na casa dos setenta, mantinha o porte e a verbosidade de sempre. Sem ocupação outra que não de vigiar a miudagem e arbitrar contendas entre vizinhos, gastava o dia para cá e para lá ao longo da linha branca orlada a amarelo ocre: o “seu†bairro. Em passinhos mansos, como quem “não quer a coisaâ€, o Senhor Aquilino, às páginas tantas, tinha ganho, à boca pequena, o epitáfio de “o pisa-floresâ€. O “pisa-flores†para cá, o “pisa-flores†para lá…
Com o decorrer dos dias, dos meses e dos anos, quase todos se tinham esquecido do seu verdadeiro nome, ou melhor dizendo, daquele com que se tinha apresentado aos restantes moradores, quando, numa tarde alcantilada nas memórias de todos, a Vivi, Virgolina de seu nome, por ele se fez acompanhar de braço dado…
“Teuda e manteuda, abrenúncio Santo Padre…, bem se via pelo andar da carruagem que este era o destino dela. Nunca teve dez alqueires de siso. O povo diz com razão: "muito riso, pouco siso". Por conta, é o que é. Uma afronta para o bairro. Somos gente pobre, mas digna. Aqui nunca se viu coisa igual…â€
Vira. Mas a memória colectiva era curta. E apontar o dedo dava jeito. Enquanto se apontava o próximo não se fala das misérias próprias. Mas isso era “outros quinhentos mil-réis†e, do que vos falo hoje é mesmo do “pisa-floresâ€. Ora não nos desviemos então…
À porta do número 31, lá estava o Ford preto, chovesse ou ventasse, estacionado e empoeirado pela falta de uso. Só uma ou outra viagem à cidade se impunha e, nesses dias, nos que antecediam ao grande acontecimento que era o de ver o Ford de marcha à ré a levantar poeira por todos os cantos, Vivi e as manas, desdobravam-se em idas à fonte, lavando primorosamente o distintivo da sua “qualidade de vidaâ€â€¦ zelando escrupulosamente para que, nem um só risco, ofuscasse o fulgor do dito, quando descesse até à Nacional 10. E, claro, nos lavadores e nas lojas, por onde passavam ou mandavam se não iam, sempre iam anunciado a necessidade imperativa do “Senhor Advogado Aquilinoâ€, ir à cidade receber as rendas e vigiar o bom andamento dos seus negócios…
Por aqueles tempos não se sabia ao certo que negócio tinha o “Senhor Advogadoâ€, nem que rendas lhe eram devidas. Fossem quais fossem, o certo era que, sempre que voltava, a Vivi ostentava o sucesso das itinerâncias e os dias da ausência eram sempre de grandes labutas. A casa arejada, encerada e limpa ao pormenor. As jarras enchiam-se de flores e Vivi dormia e andava de rolos na cabeça vários dias antes. No dia da chegada, defumavam-se as divisões com folhas de laranjeira e rosmaninho e mais umas quantas plantas secretas, por via dos maus-olhados. Vivi vestia um dos seus melhores vestidos, as manas gastavam meio dia a ripar-lhe os cabelos até ai enrolados em rolos, como já se referiu, e cuidavam para que tudo fosse a contento do “Senhor Advogadoâ€. Os acepipes, o prato principal… O vinho. E ei-lo que chegava…
Nos dias seguintes ao regresso, quando os homens voltavam das fábricas e dos campos, lá estava ele, encostado à figueira centenária, com o cachimbo da “paz†na queixada adunca… Esperava-os para lhes falar da cidade grande e, como não quer a coisa, ir ouvindo aqui e ali o que lhe interessava ouvir: dos bulícios, dos desconfortos, dos anseios e movimentos dos trabalhadores: - “Confidente, meus senhores… estejam comigo à vontade, mas olhem o balbucio… falem baixo, nada de confusões, perguntem, perguntem que, no que puder vos hei-de ajudar… mas cuidado com o balbucio, homens, cuidado…É que há a lei e o espírito da lei, como sabem…â€. Enfatizava o “balbucioâ€, vezes sem conta… O eco propagava-se em mim, desmesuradamente: “Balbuciooooooooooâ€â€¦
Menina que era à altura, agarrava-me ao macaco que meu pai vestia, tremendo que nem varas verdes… Balbucio? Quem seria? Se havia uma Balbina, uma Ti-Balbina, podia ser um Ti-Balbucio… mas não me fazia sentido… Os “Ti†da serra eram todos pachorrentos e boas pessoas e aquele “Balbucio†a fazer fé no tom com que era prenunciado, pela certa era ou bicho ou coisa ruim… Temia, pois. E, porque me haviam ensinado a não me meter nas conversas dos adultos, não perguntava nada mas quando a noite tombava e as estrelas se escondiam no galinheiros das minhas “pitasâ€, escondia-me por sob todos os cobertores e rezava ao menino Jesus para que me livrasse do “Balbucioâ€â€¦ E ao pai, à mãe, aos primos, e aos vizinhos… E à minha cadela Traquina, e ao meu gato Jeremias… A todos. Todos…
Correram os tempos. As viagens continuaram. As do Ford, as do Senhor “pisa-floresâ€â€¦ E, curiosidade das curiosidades,  a aldeia deixou de ser tão tranquila…
A cada “itinerância†do Senhor Advogado, correspondia uma agitação sem comparação no antes… Homens estranhos começaram a visitar a aldeia amiúde. A visitar as casas de cada um. A vasculhar as casas de cada um, detalhadamente. As vidas de cada um…O banzé, o “balbucio†tinha por fim chegado sem aviso… Mais baixo que se pronunciava o cognome de “pisa-floresâ€, passou a correr outro cognome como senha … “o Pide…†Mas não a tempo de uns quantos, aqueles que haviam solto a língua naquelas conversas inocentes de fins de tarde sobre as figueiras dos figos de capa-rota, não terem “rebentado a bocaâ€. Uns presos, outros admoestados e devolvidos provisoriamente à liberdade…
Agora já ninguém confiava a disputa das contentas ao Senhor Advogado, nem sequer paravam por perto dele. Agora era o tempo de cerrar fileiras a estranhos ao bairro. E cerrar a boca e abrir os olhos e os ouvidos. E medir o rigor de cada palavra. “da lei e do espírito da leiâ€, dos rumores e dos balbucios, do “diz que disseâ€.
Não disse! Não ouviu! Não viu! Nem sabe quem viu, ouviu ou disse…
Estancar a verborreia num garrote apertado… Apressar o passo!
Afinal, foram dele sempre as palavras “olhem o balbucio, meus senhores, olhem o balbucio…â€.
                            E minha a intuição de que “balbucio†só podia ser coisa ruim…



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Mel de Carvalho
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« Responder #1 em: Janeiro 10, 2010, 16:23:44 »

Minha cara Mel
Mais um bom conto com aquela característica da vericidade que tanto me encanta .
Na verdade conheci muito bem aquele tempo e o clima que crescia à volta daquela gente - se é que gente se pode chamar-lhes -
Parabéns e que os referidos tempos não voltem mais .
seu
Geraldes de Carvalho
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« Responder #2 em: Janeiro 13, 2010, 14:44:35 »

Um relato a fazer recordar maus tempos. Havia disso em todas as aldeias. Também me lembro do da minha!
Beijo
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Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Olá para todos!
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Boa noite feliz para todos.
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