damasco
Membro da Casa
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.
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« em: Maio 31, 2009, 23:41:29 » |
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Duas figuras estáticas à porta da casa. A casa é amarela. Não flores, não árvores. Sol e casa. Um sol grande espreita por entre as pálpebras do menino no colo da mãe. Não há expressão no rosto, um só sol grande, maior que a cor da pele a escovar o cabelo, fio a fio, como fragilizado diante do astro a brilhar, a mulher do colo oferecido, estátua impune, espessa como rocha pedra, no agarro do menino pequeno, quase a terceira mão da mulher que o ampara na queda, caso não fosse a mão cairia. O pai ao lado feito estátua de pedra a amarelecer. A tarde está alta e eles fora de casa olham lado nenhum, ainda se a pedra permitisse ver, não sai nada deles, como fossem parados no tempo. Atrás, a casa amarelece com eles. Estática, direita, sem ervas, sem pedras, amarela, o único lugar para onde olhar. E eles parados, o sangue acabou de secar nas vistas, assoma ainda à s paredes da cara, desaparece em seguida sem destino, escoada pelas máquinas que se escondem na pele. Ao fundo da rua. Ao fundo da rua, para onde olham, uma multidão, uma multidão em fúria, não bem humanos em uso de individualidade, uma turba que se confunde, se troca nas partes de ser humano. A vida volta aos pais e ao menino dois segundos depois da petrificação e olham o fundo da rua. A multidão aproxima-se em velocidade e ameaça pisar a casa amarela, roubar o amarelo, as paredes e a casa. E os pais e o menino mexem-se e entram em casa. E a mão do menino, para onde foi? Adentrou camisa da mulher e perdeu-se inerte na pele. O pai sentou-se pesado, mais ar a entrar que a sair, assustado da multidão que lhe entrava pelos olhos, um coração pesado a sair da boca. O pai sentado. Tosse muito forte. Tosse ainda mais forte e a mulher leva-lhe as mãos em concha à testa a ver das temperaturas. Homem, murmura. A mulher ainda está na pele do menino, sente o calor da pele. O pai levantou-se nessa manhã muito nas horas do cedo. Disse Vou a cuidados das videiras e das oliveiras que haverá por lá bicharada a estragar as folhas. A mulher ficou muito quieta, muito atenta, suspeita, a medir a extensão da tristeza do homem. Depois virou olhos ao chão. Nem se sabe que se lhe viu nessa altura, se foi dor, se foi a falta de uma permanência que parecia esvair-se pelas órbitas. Mas baixou muito muito as mãos, como derrotada pelas coisas da vida, e ficou mais sentada. Quase toda a famÃlia sentada, quase toda ela não mostrava alento maior que esse. Todos sentados. Não a Nice. A Nice era a única que se levantava, quando muito para ir regar as begónias e as roseiras teimando em dar flor, ansiosas por misturar os cheiros com o calor, um calor de Maio, daqueles que aparecem de mansinho. Atrás da casa há um palheiro muito podre, muito sentado também, muito destruÃdo, muito cheio de ratos e de mau cheiro, e muito de ervas e sementes que caem dos sacos e do provisório sobrado, esticado entre duas traves toscas, e nascem sempre que uma humidade as encontra. A Nice chegou ao palheiro muitos anos atrás e ficou a tratar das plantas e das sementes. Os farrapos todos a roçarem pelo chão. Foi a mulher quem a encontrou e disse-lhe que fosse embora e a Nice chorou nesse dia. A Nice chorou muito porque estaria no abandono das sementes e das plantas que cultivava à força do acaso no chão do palheiro. A mulher disse-lhe muitas vezes que fosse embora, muitos dias seguidos, e a Nice ficou sempre. SaÃa de dentro, comida pela escuridão, aguçava a espinha, muito direitinha, inesperadamente direitinha, e olhava a mulher nos olhos, ela a dizer-lhe Tem de ir embora, não a quero aqui. E a Nice chorava mas nunca foi. Sempre de volta das plantinhas nas rachaduras do cimento, que a humidade tratava de regar. A Nice foi ficando. O homem só a viu muito tarde. O homem nem a falou, nem lhe disse ao que vinha, como a mulher tivesse desde logo ficado dona do destino da Nice. Foi-se chegando, chegando, e a mulher deixou, foi a penas dela dar-lhe comida. A Nice comia tudo sôfrega, faltava-lhe o ar, à Nice. Ficavam sentadas as duas à sombra da oliveira a trocarem coisas quaisquer, por vezes palavras, por vezes silêncios. A mulher fez dela companhia que nunca teve. Muito só, tão só como o homem. E a Nice cresceu nas importâncias. Sempre os dentes dela maiores que os dentes e qualquer alguém. No sol debaixo da oliveira. O homem não foi de sentenças com Nice. Um dia apanhou-a a dormir destranquila no palheiro e baixou as calças. A Nice guinchou e depois satisfez os desejos do homem. A Nice ficou. Entre o consentimento desinteressado e falado da mulher e o consentimento interessado e mudo do homem, a Nice ficou. Em pouco, transformaram o obscuro palheiro em lugar apropriado à s dormideiras da Nice. A mulher sentava-se com ela durante as tardes, por vezes nas manhãs, e silenciavam-se a falar. Nice não ria muito, não falava muito sequer, se é que o saberia fazer, mais uns guinchos entrecortados por palavras mal formadas. As duas. A mulher ficava a invejar a sorte da Nice, que sem o falar parecia sorrir por dentro ou, no menos, esconder na inexpressividade qualquer forma de tristeza, como o olhar fosse feito de um só tom, de uma só nota, nada mais que um leve franzir, aqui e acolá. E a mulher a interessar-se por ela, a formá-la nos assuntos da vida, como se falaria, que sons esperar, como o olhar é o espelho da alma e a Nice, mais que sorrir, imitava as feições do sorriso. Depois a Nice desaparecia para o galinheiro, matava uma galinha pelo pescoço e trazia-a aos penduros, as penas formando espécie de caminho ensanguentado. A robusta árvore aparava os calores do verão e, durante o inverno, espécie de painel plástico, cobria-as da chuva. As visitas do homem aconteciam ao anoitecer, quando a mulher se dedicava a dormir prolongada sesta na sala, e os livros por ler se espalhavam no chão, abertas à espera que as palavras formassem sentidos na cabeça da mulher, que poderia até pensar nelas durante o sono. A casa sentada. O homem chegava a desmando ao palheiro, baixava as calças e a Nice guinchava baixinho porque o homem lhe tapava a boca. A gravidez da Nice terá durado os meses previstos ou até mais. Foi durante uma trovoada que o menino abriu os olhos. A mulher, já grávida do roubo do menino, lavou-o em água morna, aconchegou-o ao peito e fez sinal de silêncio à Nice. Depois desapareceu e a Nice ficou encharcada em sangue. O homem também entrou. Passou as mãos pelo cabelo da Nice e disse-lhe Lamento. Ela guinchou sem bem saber o que lhe acontecia e depois sossegou. O menino avança com as mãos pele adentro e encontra o calor exacto para se esconder, se diluir todo nele, como uma ponte existisse entre o menino e a mulher. Não sossega. Esperneia. E o homem olha muito triste para ele. Sentado. Os dois muito quietos, em estado de sobressalto petrificado. O menino berra. Contorce as mãos sem destino no ar, forma cÃrculos, cÃrculos desconexos com as mãos. E não olha nada. O amarelo da pintura da casa entra pelas paredes, parece que sua nas pedras, que as atravessa, e encontra caminho para entrar, como a casa fosse porosa e a atravessasse a direito. O calor mancha as caras, mancha os móveis, a pequena arca de madeira ao canto, a mesa rugosa e as cadeiras estaladas. O homem baixa a cabeça, baixa muito a cabeça e segura-a entre as mãos, mais que a segurar, esconde-a. Lá fora, a Nice cantarola uma canção e a mulher sussurra Está quietinho, menino. A mulher afasta a cortina e espreita, o queixo lançado para a frente como os olhos lhe ocupassem o lugar dos dentes, e diz Parece que os apanharam desta vez, homem. O pano agita as delicadas flores, parecem mexer-se, uma brisa provocada abana-as, como estivessem em pleno campo, mexem-se, e abrem-se para dar lugar ao queixo da mulher e aos olhos que tem no lugar dos dentes, como fosse obrigada a esticar a cara a partir de baixo para ver melhor, e diz Parece que os apanharam desta vez, homem, mas neste segundo murmúrio houve ainda mais de murmúrio que de som para ser ouvido, falando para si própria e a pensar na medida das palavras e o que elas poderiam implicar, e o homem olhou para ela a partir da cadeira onde se tinha sentado, a casa quase toda sentada, excepto a mulher de queixo esticado, e olhou-a a custo, não se importando com as palavras, mas ouvindo apenas para ter a certeza que ainda tinha a companhia da mulher ou que eles ocupavam a mesma casa, uma confirmação de que necessitava constantemente, e o queixo da mulher esticou mais, a tocar agora o vidro e a deixar uma pequena mancha de gordura, logo acusada pelo sol mais tosco que se lhe viu, causando um tremor na luz da casa, a mesa em menos luz, menos um pouco de luz, e a parede a fazer-se menor da diferença, ficou o homem a olhar a mulher e a confirmar que ela ainda estava. O menino na agitação dos braços. Nice, gritou. Nice, gritou a mulher, virando-se para conduzir a voz ao fundo da casa, à porta dos fundos, onde a Nice estaria na rega das flores, Anda cá, Nice, gritou a mulher, e o homem baixou novamente a cabeça, agora baixa à força da intencionalidade de não a querer levantar. A voz da mulher atravessou o escuro corredor, iluminado à s custas da janela da sala, um pouco mais fosca depois da gordura do queixo, e desceu três degraus para chegar submissa perto da Nice. A Nice chegou ainda de balde na rega, esbaforida das pressas da chamada, o regador a pingar pela sala, Já te disse para teres cuidado, Nice. Sim, senhora, deve ter sido isto que ela disse, não se percebeu muito bem, mas ficou quieta e muito de olhos no chão, envergonhada não por ter levado o regador para dentro da sala da mulher e do homem e do menino mas por ter recebido as palavras naquele tom que lhe pareciam desfavoráveis. Os olhos da Nice ficaram no chão enquanto a mulher se virou e a olhou. Parece que apanharam os ladrões, Nice. Agora podes ir descansada que mais ninguém te aponta culpas por andares a roubar. E a Nice olhou-a quase a imitar um gesto alegre e saiu a correr pelo corredor, para o jardim, para o quintal, e chegou-se muito muito ao portão de ferro, trepou, os pés numa das barras, os braços por de fora, e olhou lá longe uma gorda e uma criança, um multidão atrás deles, muito zangados, contrariados, de punhos no ar, mas já mais ar de gozo de fúria libertadora que de zanga genuÃna, e corriam. E a Nice julgou ver o filho perdido durante a trovoada anos atrás e riu de alegria por sabê-lo vivo.
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