O barrento da hora

[Mel de Carvalho]

O barrento da hora
arrasta o azul do rio em enxurrada lenta, demorada.

Vazia, a casa velha, fala a voz das paredes pelejadas de silvados e d’heras.
Na hora exacta, na exacta medida, adensam-se silêncios nos cheiros putrefactos das últimas rosas. Encarquilhadas, desfolham-se e logo são, não mais que desnudas flores de um tempo vão… No desvão das escadas empinadas a um céu pálido d’aguarelas, urtigas trapaceiras mordiscam afadigadas, já sem determinação ou energia, pernas finas de abelhas e de moscas. Insectos banais, pequenos, residuais, do reino dos animais.

No escurecido cinza dos quintais, nespereiras bravas, laranjeiras anãs, enterram radicais livres na grama e na greda. A sebe verde, recém cortada, revela a cena até então resguardada d’olhares alheios. Nos tons de todas as cores, subsistem à vista desarmada, delírios enredados na teia alterosa dos sentidos - coisas menores, archotes sem brilho, sem flama.

Ao Sol poente, na sede de límpidas águas e p’las veredas, já esgotadas, escorem-se no gesto títere do vazio, Tágides, ninfas do rio, causticadas de escutar sapos falantes em delírios oníricos e inconstantes.

Não, não mais bocas indecorosas a beijarem a minha voz!
Não mais prosaicos instintos, dissimulados na volúpia descamisada em trevos de quatro folhas. Rebusco no barro e na greda, a pedra lapidar de um sorriso, o toque harmonioso do beijo colibri a adejar fraga no teu olhar. O afago lento, tegumento, pele na minha pele. O meu nome inscrito no teu tempo… no teu tempo.

Respondem-me glaciares escorrentes, ausentes d’afectos e de flores. Restam-nos atavios desfeitos, correntes ventososas, lamelas funiculares. Vendavais inóspitos, desconvenientes no galope de querer ser gente, tais cavalos tauromáquicos, sem redondel, cela ou freio.

Na berma da calçada, a verdade amareleja envelhecida na busca das suas múltiplas vertentes.
Articula-se em sons de um sol ausente, reformula-se condensada nos traços imprecisos do branco cal com que se demarcaram os limites da estrada. Delimitada, quando, no baixio, lá mais à frente e lateral ao rio, metálicos comboios viajam a tarde, perfilados, sem servo-freios.
Vagões cúbicos, carregados a carvão, prosseguem por sobre carris desnivelados.
Recurvam quebrantados na gravilha solta por dentro das chulipas da madeira. O chão é agora a noite, a noite inteira…

À tarde das horas mudas, faúlhas incendiárias, rebolam definitivamente jazidas no fundo do rio.
Não, não sinto o frio!

[Goreti Dias]

Metáforas inusitadas, encadeamento inesperado, sonoridades especiais... Um sujeito vendo o mundo por olhos diferentes dos comuns mortais...
Excelente prosa!
Bjs

[britoribeiro]

Outra dimensão, outra forma de observar... e de sentir.

Abraço

[Mel de Carvalho]

Caro Brito,
tento olhar o mundo de um modo atento e partilhar os meus registos sensoriais com quem me lê.

Um abraço muito grato por o fazer!
Mel

[Mel de Carvalho]

Metáforas inusitadas, encadeamento inesperado, sonoridades especiais... Um sujeito vendo o mundo por olhos diferentes dos comuns mortais...
Excelente prosa!
Bjs

São registos sensoriais, na verdade. Deste ou de outros tempos.

Um beijo grato, Goreti!

[Mel de Carvalho]

Uma forma muito própria de sentir e observar, o te que rodeia.
A Mel de corpo inteiro, e a sua sensibilidade.

Gostei muito!

Beijinhos...

Gilberto,
é sempre muito bom saber que nos lêm e que o que escrevemos faz sentido.

Abraço fraterno e grato!
Mel

[Mel de Carvalho]

Só a mente consegue alcançar...viagens alucinantes em tão belas descrições...a experiência e a sabedoria são bens que se adquirem na tua alma.
Sem palavras
Beijinho
ConceiçãoB

Querida Sãozita,
Hoje andei por aqui a ver os meus textos ... desculpa, não agrdeci este teu comentário (são tantos os que não agradeci ... mil perdões ). Mas agradeço agora, minha amiga ... e agradeço sempre, porque sei que me lês e que me estimas, sendo que, e como sabes, sinto igual respeito pelo teu trabalho.

Beijitos
Mel