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Autor Tópico: Valéria  (Lida 4376 vezes)
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marcopintoc
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« em: Maio 02, 2009, 23:05:52 »

Valéria chegou numa manhã de inverno onde os seus olhos de fiorde distante se diluíam, curiosos, sobre a vizinhança onde pousava pela primeira vez o seu pé envolto em calçado grosseiro. Modestas e largas , amorfo atentando às linhas esculturais que mais tarde se revelaria ao mundo , eram também as roupas que indicavam na sua coceira uma origem pobre .Em redor dos olhos profundas covas de cansaço revelavam o pouco alimento e a longa viagem a que se submetera. Antagónicas à fragilidade da figura feminina eram as largas espáduas do homem que a acompanhava. O homem do sovaco inchado pela arma , do olhar sem centelha de misericórdia  oculto em negrumes de lentes espelhadas. O carro era potente , o condutor saíra rapidamente e controlara a vizinhança .Do banco de trás veio  o homem que tinha  a arma , em seguida saiu ela; hesitou, era evidente o desconforto, os derradeiros momentos de uma existência que só conhecera a decência assolavam o rosto quase angelical. Os pés encolheram-se antes de tocar o solo, como se fossem hesitantes no início da sua marcha para a perdição.

Valéria era mercadoria de valor. No apartamento do rés-do-chão a mulher mais velha esperava. Os cantos da boca descaídos, os olhos vagos e cansados de milhares de carnes pagantes dentro de si , seios opulentos que mil mãos de homens , ora trémulos ora vorazes de fêmea , haviam esmagado . A firmeza no gesto com que recebeu o saco de viagem e empurrou Valéria para o interior do prédio marcou o território. A mulher mais velha disse sem falar, apenas uma mão onde as unhas longas desviavam a atenção para o mindinho ausente ; uma mão que em quatro dedos disse quatro palavras silenciosas. “Vieste para ser puta”. O olhar de Valéria caiu no chão e os seus ombros esguios viraram-se para a frente como se uma vergonha de menina quisesse fazer mais pequeno o peito que alimentaria sua boca.

A  porta fechou-se com estrondo. Minutos mais tarde os tachos ecoavam na cozinha. No quarto dos fundos  Valéria soluçava contra a almofada. Foram-lhe concedidos dez minutos de carpir até que um punho fechado e braceletes iradas embateram com força na porta e chamaram para uma comida que se revelaria sem sabor e sem cuidado no preparo. Valéria comeu em silêncio  ,junto à janela de cozinha ; em pé, aspirando baforadas de um cigarro, a mulher mais velha analisava a recém-chegada como uma vendedeira de um templo impuro. O cálculo do valor da mulher faminta era especulado pelo esgar de ganância que acompanhava os lábios pintados de escarlate. Em sussurro eslavo a mulher mais velha apercebia-se do valor da presa. Quando a refeição terminou, ainda mal o último pedaço da carne mal assada escorrera pelo esófago de Valéria, a mulher velha falou alto e exigiu a nudez total.

Um gesto de hesitação foi interrompido pela brutalidade de uma estalada e uma imposição do “Já!”.Tremendo sobre o mosaico o corpo de Valéria foi exposto. Havia no olhar da mulher velha a experiência do apostador que mira a firmeza das patas do corcel. Valéria era puro-sangue pelo qual os mais exigentes jockeys pagariam avultadas somas. Os dedos grossos cravaram-se na firmeza da nádega, uma palma de mão, cuja a epiderme conhecia todas as variações da dimensão e vontade dos homens que iam às putas , alisou o longo e escorreito cabelo de loiro genuíno e avaliou o grande sucesso que Valéria teria na posição primordial , o quatro canino que a todos os clientes parece agradar apenas variando  o sitio por onde preferem a entrada . O menos comum , o dedo comprovou enquanto um grito agudo da mulher nua surpreendia-se  com a invasão às suas entranhas , seria altamente valorizado , seria luxo que custaria mais que o salário mínimo nacional. Em seguida foi ordenado que se vestisse e fosse para o quarto.

Alguns dias depois o seu primeiro cliente, um próspero magnata da cidade que pagava sempre bem pelas novidades -“ Fresquinhas , gosto delas ainda limpinhas” -gritou e convulsionou-se dentro de Valéria. Os gritos ajoelhados da jovem eram da mais pura dor perante a violência das investidas. Valéria não desiludiu a expectativa do freguês. À noite teve direito a rancho melhorado e a um creme para as chagas.

Em muitas noites seguintes a rotina persistiu. Dois, por vezes três clientes. Uma linha de coca ao fim da labuta, as bravatas com as outras prostitutas. Quando tinham que fazer espectáculo umas com as outras eram mais generosas nas dosagens. Os clientes adoravam o frenesim do deboche. Valéria ganhou reputação. Gostou . Houve um dia em que gostou de ser puta. Do dinheiro, dos clientes mais delicados que enviavam rosas antes da sua brutalidade feita de punhos fechados .

O sangue pagava a vergonha. Valéria já não se lembrava do choro inicial mas era meticulosa na verificação do bom estado dos artefactos mecânicos que compunham o seu circo. O nome andava nas bocas dos que podiam pagar pelo aperto e pelo chicote. As notas abundavam, as linhas tinham-se tornado intervalos cada vez mais curtos da restante existência.
Falaram-lhe em jogos mais proibidos. Onde o dinheiro era maior, o suficiente para cobrir as profundas cicatrizes e silenciar os imensos horrores e desvios de homens poderosos. Ela disse que sim, que iria.

Então ,um dia , Valéria mergulhou em direcção a outros infernos.
Levaram-na, vendada , desconhecedora de aonde ia .As rodas do carro de luxo fizeram restolhar a gravilha de um lugar que era covil de prazeres dos homens que não o deviam ter.

Num acto de doutrina veio um alto dignitário da igreja lutar pela alma de Valéria e de outra rapariga. Benzeu-as com o mel sagrado do seu falo depois de o chicote ter punido o herege espectáculo lésbico com que sua eminência havia sido agraciada.
Num segundo acesso de fé recordou, o santo homem, as lides de outros tempos. Na posição que a fizera famosa Valéria sufocou perante a asfixia das pedras do rosário. A língua roxa pendeu para um dos lados. Por detrás do rosto onde os olhos azuis quase saltavam das órbitas o homem da batina abençoava-se em espasmos que acompanhavam o estertor final de Valéria.



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Marco Pinto Correia

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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Maio 03, 2009, 20:24:07 »

Mistura indigesta e horrorosa, um conto de desatinos execráveis escrito no melhor estilo!
Beijo
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Goretidias

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damasco
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« Responder #2 em: Maio 11, 2009, 10:56:38 »

Apre. Raios. Isto é muito bom.
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marcopintoc
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« Responder #3 em: Maio 11, 2009, 13:53:49 »

Muito grato pela vossa leitura da ascensão e sufoco de Valéria
Abraço
Marco
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Fábio Videira Santos
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« Responder #4 em: Maio 26, 2009, 17:03:57 »

Uma prosa cheia de dissecações.
E que o inferno, a existir, talvez sejamos nós a amparar-lhe os alicerces.
Numa sociedade também ela, por vezes, prostrada pelo seu próprio peso.


abraço,
fvs
« Última modificação: Maio 26, 2009, 17:23:20 por Fábio Videira Santos » Registado
Djabal
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« Responder #5 em: Maio 26, 2009, 19:49:31 »

Muitas vezes torna-se difícil, quase impossível,  colocar-se na pele de outrem, a fim de que os atos, os fatos, as crenças, sejam justificados,  por qualquer raciocínio plausível.
Resta-nos uma explicação possível. Da extrema sordidez que se torna rotina e nos estremece de pavor, causando admiração pelo texto, pela descrição e pela quantidade de detalhes.  O horror também atrai. E há que ser mestre para isso. Meus parabéns.
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Dionísio Dinis
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« Responder #6 em: Maio 26, 2009, 20:25:56 »

Duro e glacial. Um portento de bom prosear a toda à prova!
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Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
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Vanda Paz
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« Responder #7 em: Maio 26, 2009, 23:02:57 »

é sempre um prazer ler-te

Beijinho
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Vanda Paz
marcopintoc
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« Responder #8 em: Junho 05, 2009, 13:53:15 »

Muito grato pela leitura e comentário.
Júlio , o tempo virá. Creio nisso. Com uma certeza imensa
Abraço
Marco
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Boa noite feliz para todos
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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