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Autor Tópico: Jantar dos Sós - IV  (Lida 2480 vezes)
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marcopintoc
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« em: Maio 01, 2009, 01:11:21 »

Fome.

A sofreguidão da horrenda Theofania Delasombra atravessou o frio da noite. As chaminés emitiam o fumo do aconchego. No ar os aromas da refeição dos pacatos cidadãos misturava-se com o odor a talco e os ruídos pequeninos que ocasionalmente ecoavam no berçário. A rainha dos Callicantzari incomodou-se com a perturbação que os restos do peru e os fritos traziam ao seu olfacto maravilhado nas fragrâncias das peles lisas e tenras que se agitavam no sono dos primeiros dias de vida. As suas presas entreabrirem-se para proferir uma obscenidade que só o demónio entendia. Sacudindo as asas negras cerrou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Os longos cabelos escorriam iluminados pelo céu onde a lua persistia em alumiar tão nefasta criatura. As narinas abertas contorciam-se perante a predição da abundância das jovens presas que estavam a curtos minutos de voo. A bífida língua acariciava as fauces, Theofania agachou-se no preparo do salto para o vazio, o enfunar das asas efectuou-se numa velocidade cerimonial.
A necessidade não apressava os gestos da morte alada que iniciou a carga sobre a casa de Deméter.

Fome.

O mais pequeno, aquele que havia nascido antes do tempo ser tempo de vida , agitou-se um pouco na incubadora. Os olhos verdes , raiados do sangue da vigília e do cansaço dos anos  de Zana Glastings procuraram o relógio que estava sobre a porta da sala onde as crianças dormiam. Eram três , um deles precisava de especial atenção. Estava com fome.
A forma como a sonda foi ministrada para encher o pequeno estômago de pele ténue demonstrava o longo saber feito a cuidar dos outros. Após a refeição a mão enrugada de Zana invadiu o espaço interior da incubadora para afagar o bebé. Os movimentos dos pequenos pés demonstravam que tinha cócegas na barriga. A velha enfermeira sorriu.
Em seguida passou junto aos restantes berços ocupados para acautelar o aninho da coberta. Os seus pés, que não faziam qualquer ruído sobre o solo de cerâmica, detiveram-se contemplando a cidade que se estendia em todo o redor das janelas panorâmicas do piso.  Zana gostava daquele local de dia , do sol a inundar de luz e calor as fileiras do berçário. Todavia a noite sempre a inquietara. Recordava-se muitas vezes da Velha e das coisas que com ela aprendera. Antes da guerra, quando ainda as rosáceas das suas faces redondas e bem-dispostas se estendiam crentes no bem dos homens.
Todavia viera uma nação hostil , os homens haviam sido chamados aos campos de peleja, novas armas abriram clareiras de vida entre as tropas de infantaria. O homem de Zana morrera entre tantos outros  que seus nomes foram rapidamente esquecidos na azáfama de matar o próximo.

A Velha e a Guerra haviam sido os momentos cruciais da existência já sexagenária de Zana Glastings. Enfermeira de campanha condecorada com a maior distinção que se pode dar a uma não combatente. Ela todas as noites recordava o dia . O dia da bravura, o dia em que usara seriamente pela primeira vez as coisas que a Velha lhe ensinara, o dia em que o medo a fez correr para a terra de ninguém ao resgate do capitão de lanceiros que gritava por ajuda e por deus perante a visão e a dor dos seus membros amputados . Uma metralhadora cobria a zona. O barulho das carnes dos mortos, retraçadas inúmeras vezes pela munição de elevado calibre, fazia lembrar uma chuva de pingos malévolos .  Zana correu , os seus largos ombros de mulher de trabalho haviam erguido com facilidade o desmembrado oficial. A cabo-socorrista  Glastings iniciou a marcha de regresso às suas fileiras quando a metralhadora se calou por um instante. Os olhos de Zana esbugalharam-se de horror . O artilheiro fazia pontaria a ela. Estava a passos de ser dilacerada pelo fogo dos canos rotativos. Então falou uma das lengalengas que a Velha lhe havia ensinado nas noites onde o luar inexistente ocultava os sussurros da anciã e o olhar atento e reverente da sua discípula.
A língua era a dos antigos , o chamamento à protecção de uma entidade cujo nome já não habitava as rezas dos homens. Na sua agonia o capitão de lanceiros percepcionou algo que julgou ser fruto da dor intolerável que lhe pingava das rótulas mas, quando a fila de balas entrou na arma inimiga e o chumbo foi cuspido , o oficial percebeu, pelos ruídos do ricochete na aura de luz lilás que cobria todo o corpo de Zana e sua carga , que estava a ser salvo por algo maior do que aquela socorrista corajosa que persistia na seu caminho de regresso.
Quando , já na trincheira cheia de homens de suas fardas , Zana pousou o oficial este teve a clara percepção que iria viver e que necessitava , para todos os dias que lhe restavam , de agradecer esse facto ao Deus que cuidava do seu lado do mundo. Para lá das lancinantes dores que o trespassavam a percepção e a fé que tinha estado aos ombros de uma enviada de algo bom confirmaram-se quando seus olhos se encontraram. Havia algo a brilhar no fundo das pupilas de Zana , o quase moribundo lanceiro agarrou-se à centelha e sobreviveu. Voltou a casa, cuidou dos seus .
 
Uma prece aos protectores saiu dos lábios de Zana quando avistou a criatura alada que se aproximava. As longas asas , a Velha falara-lhe do que ali vinha. A enfermeira recuou dois passos. Hesitou um breve instante, na sua mente a recordação  do conhecimento das fraquezas do inimigo demoníaco e aflição pelos pequenos estrangularam-lhe a garganta. A voz dentro de si disse:

- Chão sagrado

Zana estendeu os braços e com gestos rápidos , quiçá demasiado bruscos para a sua idade , abraçou as duas crianças que dormiam sonos não assistidos e correu pelo corredor em direcção à capela da maternidade. A cabeça virou-se algumas vezes , o prematuro ainda ficara no berçário. Estava à mercê da fome da  Callicantzaro.

No céu a vampira distinguira movimento no berçário. No seu olfacto a delicadeza das carnes da criança apressou o bater das asas.
Zana pousou com brusquidão os meninos no solo da capela e retomou a corrida desesperada ,agora em direcção oposta. De volta ao berçário onde a horrorosa criatura assomava. O focinho roçou a janela, os seios da fêmea esmagaram-se e dos seus mamilos uma cataplasma negra escorreu pelo vidro. Em seguida entrou. No mesmo instante a porta dupla escancarou-se, Zana prostrou-se do outro lado da sala . Os seus olhos percorreram em palpitações milimétricas de pavor o espaço a meia luz. Sobre uma mesa alguém erguera um presépio, uma vela ardia a seu lado. As coisas que a Velha ensinara precipitaram Zana para o objecto ardente e ,em seguida, para a pequena estufa onde a criança era mantida em cuidado. Um gesto apressado abriu a tampa, a chama pousou sobre a planta do pé direito do bebé. O grito de dor foi imenso , Zana lembrou-se dos gritos do capitão de lanceiros e, tal como outrora, sabia  que não podia parar. Dirigiu a tortura de fogo para o outro pé.
Entre as fileiras de berços garganteou o guincho de raiva de Theofania Delasombra . De novo transfigurada, agora algo que se assemelhava a uma mulher de linhas generosas onde todo o corpo estava coberto de uma imunda pelagem negra. Os olhos famintos, raivosos ; a boca escancarada onde os caninos salientes sabiam que não poderiam morder a criança. A mulher velha junto à maquina sabia das debilidades  da raça Callicantzari .  Injuriada , sequiosa de vingança ,a vampira caminhou rapidamente entre as camas vazias , os cascos onde terminavam suas pernas ecoavam por todo o berçário.
A mulher com uniforme branco e touca estendeu o braço. A marcha da Theofania deteve-se . O braço estendido, o gesto da cruz. A vampira  reconheceu os gestos do inimigo.As hordas que , desde os confins do tempo , se digladiavam com a sua espécie .As guardiãs dos homens que patrulhavam a noite tentando travar os intentos dos grandes predadores alados. Anatematizou a linhagem de Zana e das anciãs.

A enfermeira transferiu o queimamento para as pequenas mãos contorcidas em dor. O braço que se estendia em direcção à devoradora de inocentes rodopiou no sentido em que o mundo gira. A voz da Velha falou pelos lábios de Zana. Sabia a oração de guerra dos homens da fé . A dor das palavras sagradas feriu os ouvidos de Theofania:

- Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, omnis incursio infernalis adversarii

A investida da vampira deteve-se pelos instantes suficientes ao fecho do círculo ritual de Zana. As chagas chamuscadas nas mãos e pés da criança tornavam-na imune à sofreguidão da rainha dos Callicantzari. A velha enfermeira sabia que os seus dons e as rezas que a Velha lhe ensinara não eram suficientes para deter eternamente a fúria demoníaca. Sabia que ia morrer, sabia que a criança prevaleceria.

 Lembrou os tempos da guerra, lembrou-se do capitão de lanceiros. Sorriu quando viu a face da Velha a pairar no ar e calculou que salvara duas vidas ao longo da sua existência . Preparou-se para o instante derradeiro.
Theofania desfraldou as garras longas da sua mão e , num golpe de cutelo, trespassou o esterno de Zana. O rasgar do osso , a firmeza do gesto indicavam que o monstro procurava o coração da velha. Enterrada até ao pulso a manápula da criatura da noite vasculhou as entranhas ainda vivas de Zana. Esta soube a dor que o capitão havia sentido.
Então a Callicantzaro encontrou o que palpitava.
E sentiu a dor que não antecipava. A luz veio dos últimos batimentos do coração de Zana. Alastrou-se, uma monção de dor e petrificação trepou pelo braço da assassina. A luz tinha o fogo azul-cobalto da arma do Arcanjo. Os gritos de Theofania Delasombra eram os  de um animal raivoso que via uma das suas extremidades arder e tombar em cinza sobre o soalho. A corrosão apenas terminou por altura do ombro, a perplexidade inundou , pela primeira vez em séculos , o rosto da rainha vampira quando , indo buscar forças a algo que já pairava a caminho dos céus, o braço de Zana lhe agarrou o pescoço e puxou o rosto da besta para junto das rugas onde a lividez se estendia como uma cortina de fim . Zana Glastings bafejou  uma nuvem de luz e morreu . O rosto de Theofania desfigurou-se quando o último suspiro da velha calcinou até ao osso as carnes, a fauce mista de mulher e morcego ganhou feições ainda mais medonhas. A vaidade de mulher que ainda restava a Theofania humilhou-a no grito de retirada que ecoou pelos telhados das casas  onde os Callicantzari prosseguiam a caçada. O bando retirou para as entranhas das cavernas que ficam no mais fundo da terra, a fome de Theofania  seria imensa , as chagas abertas empolgariam o apetite dos outros vampiros.

O corpo de Zana desfaleceu junto à incubadora. Por desígnio das sortes as suas mãos terminaram o movimento junto ao bebé.
Quando a descobriram na manhã seguinte a respiração serena da criança pousava na concha das mãos de Zana. O raiar do primeiro sorriso atravessava o pequeno rosto.
Na cidade a nova correu as ruas, entre as lamúrias dos mortos e os gritos daqueles que nunca esqueceriam o horror, ouviu-se dizer que o menino estava bem. Que o mal que viera da noite não perturbara o seu sono. Que alguém bravo tombara por ele.

Naquela manhã, que ainda assim era Natal , os passos dos homens da cidade foram mais serenos. As mãos dos sobreviventes apertavam-se mais fortes umas nas outras. Os chapéus dos mendigos encheram-se de moedas e as missas estiveram cheias até à porta. Na mais antiga igreja da cidade, uma família entrou já o padre iniciara a oração. Em silêncio os fiéis contemplaram o fervor no olhar do homem que liderava o pequeno grupo que atravessava a nave. No absoluto recato que precede as palavras da salvação apenas se escutava o chiar das rodas da cadeira do capitão de lanceiros.

FIM

Jantar dos Sós – I em: http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13159.0.html

Jantar dos Sós – II em :
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13401.0.html

Jantar dos Sós – III em :
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13545.msg58764.html#msg58764




« Última modificação: Maio 01, 2009, 01:27:00 por marcopintoc » Registado

Marco Pinto Correia

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« Responder #1 em: Maio 01, 2009, 05:50:35 »

A arte e a imaginação no seu melhor! Um conto que, no seu todo, é arrepiante de emoção!
Beijo
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« Responder #2 em: Maio 11, 2009, 13:55:01 »

Goreti,
Obrigado pelas tuas, sempre gentis ,palavras de incentivo
Abraço
Marco
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« Responder #3 em: Maio 25, 2009, 23:54:46 »

Cara Ana,
O teu comentário ,sério e ponderado, vale a longa jornada da escrita
Abraço
Marco
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« Responder #4 em: Maio 27, 2009, 10:07:08 »

Vale por mais do que isso. Vale por si só!
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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