Fome.
A sofreguidão da horrenda Theofania Delasombra atravessou o frio da noite. As chaminés emitiam o fumo do aconchego. No ar os aromas da refeição dos pacatos cidadãos misturava-se com o odor a talco e os ruÃdos pequeninos que ocasionalmente ecoavam no berçário. A rainha dos Callicantzari incomodou-se com a perturbação que os restos do peru e os fritos traziam ao seu olfacto maravilhado nas fragrâncias das peles lisas e tenras que se agitavam no sono dos primeiros dias de vida. As suas presas entreabrirem-se para proferir uma obscenidade que só o demónio entendia. Sacudindo as asas negras cerrou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Os longos cabelos escorriam iluminados pelo céu onde a lua persistia em alumiar tão nefasta criatura. As narinas abertas contorciam-se perante a predição da abundância das jovens presas que estavam a curtos minutos de voo. A bÃfida lÃngua acariciava as fauces, Theofania agachou-se no preparo do salto para o vazio, o enfunar das asas efectuou-se numa velocidade cerimonial.
A necessidade não apressava os gestos da morte alada que iniciou a carga sobre a casa de Deméter.
Fome.
O mais pequeno, aquele que havia nascido antes do tempo ser tempo de vida , agitou-se um pouco na incubadora. Os olhos verdes , raiados do sangue da vigÃlia e do cansaço dos anos de Zana Glastings procuraram o relógio que estava sobre a porta da sala onde as crianças dormiam. Eram três , um deles precisava de especial atenção. Estava com fome.
A forma como a sonda foi ministrada para encher o pequeno estômago de pele ténue demonstrava o longo saber feito a cuidar dos outros. Após a refeição a mão enrugada de Zana invadiu o espaço interior da incubadora para afagar o bebé. Os movimentos dos pequenos pés demonstravam que tinha cócegas na barriga. A velha enfermeira sorriu.
Em seguida passou junto aos restantes berços ocupados para acautelar o aninho da coberta. Os seus pés, que não faziam qualquer ruÃdo sobre o solo de cerâmica, detiveram-se contemplando a cidade que se estendia em todo o redor das janelas panorâmicas do piso. Zana gostava daquele local de dia , do sol a inundar de luz e calor as fileiras do berçário. Todavia a noite sempre a inquietara. Recordava-se muitas vezes da Velha e das coisas que com ela aprendera. Antes da guerra, quando ainda as rosáceas das suas faces redondas e bem-dispostas se estendiam crentes no bem dos homens.
Todavia viera uma nação hostil , os homens haviam sido chamados aos campos de peleja, novas armas abriram clareiras de vida entre as tropas de infantaria. O homem de Zana morrera entre tantos outros que seus nomes foram rapidamente esquecidos na azáfama de matar o próximo.
A Velha e a Guerra haviam sido os momentos cruciais da existência já sexagenária de Zana Glastings. Enfermeira de campanha condecorada com a maior distinção que se pode dar a uma não combatente. Ela todas as noites recordava o dia . O dia da bravura, o dia em que usara seriamente pela primeira vez as coisas que a Velha lhe ensinara, o dia em que o medo a fez correr para a terra de ninguém ao resgate do capitão de lanceiros que gritava por ajuda e por deus perante a visão e a dor dos seus membros amputados . Uma metralhadora cobria a zona. O barulho das carnes dos mortos, retraçadas inúmeras vezes pela munição de elevado calibre, fazia lembrar uma chuva de pingos malévolos . Zana correu , os seus largos ombros de mulher de trabalho haviam erguido com facilidade o desmembrado oficial. A cabo-socorrista Glastings iniciou a marcha de regresso à s suas fileiras quando a metralhadora se calou por um instante. Os olhos de Zana esbugalharam-se de horror . O artilheiro fazia pontaria a ela. Estava a passos de ser dilacerada pelo fogo dos canos rotativos. Então falou uma das lengalengas que a Velha lhe havia ensinado nas noites onde o luar inexistente ocultava os sussurros da anciã e o olhar atento e reverente da sua discÃpula.
A lÃngua era a dos antigos , o chamamento à protecção de uma entidade cujo nome já não habitava as rezas dos homens. Na sua agonia o capitão de lanceiros percepcionou algo que julgou ser fruto da dor intolerável que lhe pingava das rótulas mas, quando a fila de balas entrou na arma inimiga e o chumbo foi cuspido , o oficial percebeu, pelos ruÃdos do ricochete na aura de luz lilás que cobria todo o corpo de Zana e sua carga , que estava a ser salvo por algo maior do que aquela socorrista corajosa que persistia na seu caminho de regresso.
Quando , já na trincheira cheia de homens de suas fardas , Zana pousou o oficial este teve a clara percepção que iria viver e que necessitava , para todos os dias que lhe restavam , de agradecer esse facto ao Deus que cuidava do seu lado do mundo. Para lá das lancinantes dores que o trespassavam a percepção e a fé que tinha estado aos ombros de uma enviada de algo bom confirmaram-se quando seus olhos se encontraram. Havia algo a brilhar no fundo das pupilas de Zana , o quase moribundo lanceiro agarrou-se à centelha e sobreviveu. Voltou a casa, cuidou dos seus .
Uma prece aos protectores saiu dos lábios de Zana quando avistou a criatura alada que se aproximava. As longas asas , a Velha falara-lhe do que ali vinha. A enfermeira recuou dois passos. Hesitou um breve instante, na sua mente a recordação do conhecimento das fraquezas do inimigo demonÃaco e aflição pelos pequenos estrangularam-lhe a garganta. A voz dentro de si disse:
- Chão sagrado
Zana estendeu os braços e com gestos rápidos , quiçá demasiado bruscos para a sua idade , abraçou as duas crianças que dormiam sonos não assistidos e correu pelo corredor em direcção à capela da maternidade. A cabeça virou-se algumas vezes , o prematuro ainda ficara no berçário. Estava à mercê da fome da Callicantzaro.
No céu a vampira distinguira movimento no berçário. No seu olfacto a delicadeza das carnes da criança apressou o bater das asas.
Zana pousou com brusquidão os meninos no solo da capela e retomou a corrida desesperada ,agora em direcção oposta. De volta ao berçário onde a horrorosa criatura assomava. O focinho roçou a janela, os seios da fêmea esmagaram-se e dos seus mamilos uma cataplasma negra escorreu pelo vidro. Em seguida entrou. No mesmo instante a porta dupla escancarou-se, Zana prostrou-se do outro lado da sala . Os seus olhos percorreram em palpitações milimétricas de pavor o espaço a meia luz. Sobre uma mesa alguém erguera um presépio, uma vela ardia a seu lado. As coisas que a Velha ensinara precipitaram Zana para o objecto ardente e ,em seguida, para a pequena estufa onde a criança era mantida em cuidado. Um gesto apressado abriu a tampa, a chama pousou sobre a planta do pé direito do bebé. O grito de dor foi imenso , Zana lembrou-se dos gritos do capitão de lanceiros e, tal como outrora, sabia que não podia parar. Dirigiu a tortura de fogo para o outro pé.
Entre as fileiras de berços garganteou o guincho de raiva de Theofania Delasombra . De novo transfigurada, agora algo que se assemelhava a uma mulher de linhas generosas onde todo o corpo estava coberto de uma imunda pelagem negra. Os olhos famintos, raivosos ; a boca escancarada onde os caninos salientes sabiam que não poderiam morder a criança. A mulher velha junto à maquina sabia das debilidades da raça Callicantzari . Injuriada , sequiosa de vingança ,a vampira caminhou rapidamente entre as camas vazias , os cascos onde terminavam suas pernas ecoavam por todo o berçário.
A mulher com uniforme branco e touca estendeu o braço. A marcha da Theofania deteve-se . O braço estendido, o gesto da cruz. A vampira reconheceu os gestos do inimigo.As hordas que , desde os confins do tempo , se digladiavam com a sua espécie .As guardiãs dos homens que patrulhavam a noite tentando travar os intentos dos grandes predadores alados. Anatematizou a linhagem de Zana e das anciãs.
A enfermeira transferiu o queimamento para as pequenas mãos contorcidas em dor. O braço que se estendia em direcção à devoradora de inocentes rodopiou no sentido em que o mundo gira. A voz da Velha falou pelos lábios de Zana. Sabia a oração de guerra dos homens da fé . A dor das palavras sagradas feriu os ouvidos de Theofania:
-
Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, omnis incursio infernalis adversariiA investida da vampira deteve-se pelos instantes suficientes ao fecho do cÃrculo ritual de Zana. As chagas chamuscadas nas mãos e pés da criança tornavam-na imune à sofreguidão da rainha dos Callicantzari. A velha enfermeira sabia que os seus dons e as rezas que a Velha lhe ensinara não eram suficientes para deter eternamente a fúria demonÃaca. Sabia que ia morrer, sabia que a criança prevaleceria.
Lembrou os tempos da guerra, lembrou-se do capitão de lanceiros. Sorriu quando viu a face da Velha a pairar no ar e calculou que salvara duas vidas ao longo da sua existência . Preparou-se para o instante derradeiro.
Theofania desfraldou as garras longas da sua mão e , num golpe de cutelo, trespassou o esterno de Zana. O rasgar do osso , a firmeza do gesto indicavam que o monstro procurava o coração da velha. Enterrada até ao pulso a manápula da criatura da noite vasculhou as entranhas ainda vivas de Zana. Esta soube a dor que o capitão havia sentido.
Então a Callicantzaro encontrou o que palpitava.
E sentiu a dor que não antecipava. A luz veio dos últimos batimentos do coração de Zana. Alastrou-se, uma monção de dor e petrificação trepou pelo braço da assassina. A luz tinha o fogo azul-cobalto da arma do Arcanjo. Os gritos de Theofania Delasombra eram os de um animal raivoso que via uma das suas extremidades arder e tombar em cinza sobre o soalho. A corrosão apenas terminou por altura do ombro, a perplexidade inundou , pela primeira vez em séculos , o rosto da rainha vampira quando , indo buscar forças a algo que já pairava a caminho dos céus, o braço de Zana lhe agarrou o pescoço e puxou o rosto da besta para junto das rugas onde a lividez se estendia como uma cortina de fim . Zana Glastings bafejou uma nuvem de luz e morreu . O rosto de Theofania desfigurou-se quando o último suspiro da velha calcinou até ao osso as carnes, a fauce mista de mulher e morcego ganhou feições ainda mais medonhas. A vaidade de mulher que ainda restava a Theofania humilhou-a no grito de retirada que ecoou pelos telhados das casas onde os Callicantzari prosseguiam a caçada. O bando retirou para as entranhas das cavernas que ficam no mais fundo da terra, a fome de Theofania seria imensa , as chagas abertas empolgariam o apetite dos outros vampiros.
O corpo de Zana desfaleceu junto à incubadora. Por desÃgnio das sortes as suas mãos terminaram o movimento junto ao bebé.
Quando a descobriram na manhã seguinte a respiração serena da criança pousava na concha das mãos de Zana. O raiar do primeiro sorriso atravessava o pequeno rosto.
Na cidade a nova correu as ruas, entre as lamúrias dos mortos e os gritos daqueles que nunca esqueceriam o horror, ouviu-se dizer que o menino estava bem. Que o mal que viera da noite não perturbara o seu sono. Que alguém bravo tombara por ele.
Naquela manhã, que ainda assim era Natal , os passos dos homens da cidade foram mais serenos. As mãos dos sobreviventes apertavam-se mais fortes umas nas outras. Os chapéus dos mendigos encheram-se de moedas e as missas estiveram cheias até à porta. Na mais antiga igreja da cidade, uma famÃlia entrou já o padre iniciara a oração. Em silêncio os fiéis contemplaram o fervor no olhar do homem que liderava o pequeno grupo que atravessava a nave. No absoluto recato que precede as palavras da salvação apenas se escutava o chiar das rodas da cadeira do capitão de lanceiros.
FIM
Jantar dos Sós – I em:
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13159.0.htmlJantar dos Sós – II em :
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13401.0.htmlJantar dos Sós – III em :
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,13545.msg58764.html#msg58764