Goreti Dias
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« em: Agosto 20, 2014, 11:16:51 » |
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Um travesti em Santo Isidro Sebastião vive na Rua de Santo Isidro, no Porto, desde que nasceu, ou seja, há 49 anos. Era o filho mais novo de um casal de funcionários da Ceres. E, já agora, o mais bonito. Gente humilde, foram criando os 4 filhos nascidos dessa união. A mãe de Sebastião, Ana, entrou ao serviço na fábrica um dia após Joaquim. Espantadiça, olhava para um lado e para o outro à procura da cantina onde descansar as pernas e esvaziar a marmita na hora do almoço. Joaquim apressou-se a indicar-lhe com um dedo esticado o lugar procurado. A partir daÃ, iam-se olhando à saÃda ou à entrada do portão da fábrica. Como Ana era uma moça de poucos dotes fisionómicos dignos de realce e Sebastião possuÃa uma carantonha acentuada pela barba de vários dias, acharam-se quase na obrigação de se fazerem companheiros de viagem a caminho de casa, ao escurecer. As luzes artificiais fazem as mulheres mais belas, dizem. Certo, certo é que as sombras ajudam a esconder a barba por raspar. Ela vivia em Santo Isidro, ele na Rua de Costa Cabral. Em 1961, já o casal tinha 3 filhas: Inês, Libânia e Rosa. Desengraçadas como a progenitora, cedo foram servir em casas ricas da cidade e por lá tinham ficado lavando cuecas de senhoras chiques e ceroulas de homens arrimados à bengala de pau preto e castão de marfim nos intervalos dos bolinhos de bacalhau ou consommé de agrião. A mais velha, Inês, de 25 anos, acabara casada com o viúvo da casa onde trabalhava e deixara de dar preocupação aos pais e de as ter. A idade do nubente dera-lhe requinte tirando-lhe as ânsias de economia e, entre caldos de galinha e cabrito no forno, se passava o tempo destinado a outros fornos. A filha do meio, Libânia, de 23 anos, tratava de duas irmãs já entradas na idade, ali para a Rua de Santa Catarina, à entrada da rua da Fontinha. No intervalo dos terços, enquanto as piedosas senhoras passavam pelo sono, escapulia-se ela até ao vão de escada, numa corrida, apanhar a carta atrasada de um carteiro apressado. Rosa, a então mais nova, tinha uns viçosos 15 anos e servia numa casa em D. João IV. Não era bonita de cara, mas tinha umas ancas roliças e umas pernas cobiçadas pelo dono do café, no andar de baixo. Entre iscas e pataniscas lhe fugiam as pernas para sÃtios inversos. Numa situação razoavelmente desafogada, os pais não se preocuparam com a lei da reorganização da Indústria moageira saÃda do governo de Salazar nesse ano. As obras iniciaram-se na já de si grande fábrica. Os comboios uivavam nas linhas a caminho do Marco de Canaveses ou do Sul, num misto de evolução e tradição. Em Campanhã, o bulÃcio era visÃvel. Ana e Joaquim imaginavam-se a caminho de Valongo para comer uma regueifa acabada de sair do forno ou na Régua a saborear os doces rebuçados apregoados na estação. Mas foram-se deixando para trás, numa pasmaceira contagiosa de citadinos pacóvios. Ou prevenidos. Em 1965, precisamente quando se comemoravam as bodas de ouro da Sociedade detentora da Ceres, foram inauguradas as novas máquinas. Arnaldo Figueiredo, administrador de então, não se compadeceu da gravidez tardia de Ana. Os 45 anos salpicados de cabelos brancos tingidos no pó do cereal não eram compatÃveis com as máquinas da nova geração. A barriga inchada, mas não de água, muito menos. Sebastião nasceu ao som dos berros de uma televisão. Simone de Oliveira cantava “sol de inverno†no Festival da Eurovisão. Não tinham esse magnÃfico aparelho mas, do outro lado da rua, alguém tinha. A casa das “meninas†tinha uma, oferecida por um frequentador mais generoso. Pela janela aberta, soube-se da morte de Humberto Delgado, de Luther King liderando 25 mil pessoas em marcha pelos direitos civis em Montgomery, Alabama. As músicas dos Beatles não apagaram a ideia de que as notÃcias não eram propriamente tal qual passavam no noticiário. Joaquim ainda ficou a trabalhar na fábrica quando a mulher foi despedida. Ou porque se não conseguisse entender com a nova maquinaria, ou porque se tivesse sabido da sua simpatia pelos companheiros despedidos e antipatia pelo Governo, o certo é que recebeu ordem de marcha para Santo Isidro. Em poucos meses, viram-se sem trabalho, ambos. E com uma criança pequena para criar. Mas não há mal que sempre dure, como diz o ditado popular. Por baixo da casa onde moravam, um bar de alterne estava para fechar pois os donos, cansados da vida que levavam para manter o espaço atrativo, decidiram abandonar o lucrativo negócio intentando gozar a sua quinta em Ponte de Lima durante o tempo que ainda pudessem usufruir do fabuloso espaço adquirido em maré de vacas gordas. Ana e Joaquim abordaram os proprietários e facilmente chegaram a acordo. Ficaram com os mesmos funcionários para se inteirarem do funcionamento do lugar. Quando a rececionista comunicou a sua intenção de sair da casa, os donos consultaram a filha mais nova no sentido de a convencerem a trabalhar com eles. E ela aceitou. Os pais mantiveram-se na retaguarda do negócio, Sebastião ainda tomava muito tempo à mãe. Foi sendo criado pela cozinha do bar e pelos outros espaços interiores. Cedo se habituou à queles horários tardios. Tornou-se impossÃvel fazê-lo estudar. Na hora de se levantar para ir à escola, ainda estava muitas vezes a deitar-se. A mãe tentou que, durante a semana, ele se mantivesse longe mas, ao fim de semana, já nem se preocupava com o assunto. E, assim, Sebastião se foi fazendo gente entre corpetes e cintos de ligas. Tomou o gosto à s plumas e à música erótica que embalava o andar das garotas a caminho das mesas onde se sentavam com os clientes dispostos a pagar. Cedo aprendeu a maquilhar-se como elas. Aos 18 anos, fez a sua aparição pública numa dança, acompanhado da sua então namorada, Cátia. A garota, de longos cabelos negros entrava bamboleando o seu rijo traseiro na ponta do balcão, sob os olhares ávidos dos clientes. Na outra extremidade, Sebastião entrava parcialmente encoberto por um enorme leque de penas, liga vermelha na perna direita e um fato negro de licra que lhe contornava as formas andróginas. O seu número de dança partilhada fez furor na cidade e durante meses a fio o bar manteve-se repleto de clientes para os verem. Cátia tornou-se muito assediada e, num malfadado dia de Inverno, não apareceu. Sebastião teve que dançar sozinho mas, abatido pela ausência inexplicável da namorada, o seu ritmo foi mais lento, os movimentos mais compassados, uma melancolia na face… Os clientes entraram em delÃrio. A tristeza do rapaz tornava-se erótica! Com a sala ao rubro, os homens e as poucas mulheres (todas trabalhadoras do clube) viam sensualidade em cada movimento… No seu camarim, recebeu a novidade: Cátia fora para Espanha com um dos clientes habituais do espaço. Jurou não sofrer. Agora e sempre. As noites passaram-se a ritmo intenso. Outras bailarinas, loiras, morenas… mas os clientes já preferiam Sebastião. Joaquim, numa sexta feira, saiu mais cedo, pretextando cansaço anormal. Quando Ana chegou a casa, encontrou-o estendido no vestÃbulo do apartamento. Veio o INEM, mas o corpo estava morto há horas. A autópsia determinaria, mais tarde, que um enfarte o fulminara. A vida continuou. Mãe e filhos continuaram a cuidar do bar. Dividiram tarefas. A mãe manteve-se pela cozinha onde se preparavam canapés e as refeições das raparigas. Não queriam estômagos vazios onde a bebida cai sempre mal. Nem sempre era possÃvel fingirem. E nem sempre apetecia não beber. Sobretudo quando vinha para a mesa um Moët & Chandon. AÃ, tiravam prazer da bebida e da companhia. Além dos euros da comissão. Rosa controlava a caixa registadora com olhos de lince, não descurando a atenção que as entradas no espaço exigiam. Até porque era sempre divertido adivinhar quais bonitões escolheriam as raparigas por companhia ou estavam ali para apreciar o dengoso do seu irmão. Sebastião, quando não dançava, tomava a seu cargo as encomendas de produtos para o bar, verificava as contas, organizava faturas que o seu contabilista vinha buscar a cada segunda- feira. Tanto quanto se sabia. Porque, umas vezes por outras, ele desaparecia logo a seguir à sua performance, discretamente. Houve quem o visse entrar num BMW negro conduzido por um mulato bem vestido, alto e tão dengoso quanto ele. Apesar de vestir fato Armani. Num fato de licra bem apertado não caberiam os seus atributos. Hoje, a mãe tem 94 anos, ainda vive e dá conselhos sobre o bar de alterne gerido pelo filho. (todas as situações são ficção)
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