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Autor Tópico: Eu - Um texto experimental meu  (Lida 1993 vezes)
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JLMike
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« em: Janeiro 06, 2008, 01:29:31 »

Eu


Prólogo

Perdi tudo.
Perdi a minha família, os meus amigos, a minha dignidade.
Perdi a minha cidade. Perdi-me a mim mesmo.

Foi a última coisa em que Miguel dos Santos, Eu para si mesmo, pensou.
Depois, levou a mão ao bolso e dele tirou uma Glock 30. Com um leve e penoso suspiro levou a arma à cabeça e fechou os olhos.

Cap. I

Ali estava ele, deitado na sua cama. Ao seu lado, na mesinha de cabeceira, encontrava-se uma Glock 30, patilha de segurança puxada para trás, pronta a disparar.
À sua volta, espalhadas pelo chão de madeira, estavam inúmeras folhas, umas completamente intocadas, outras repletas dos mais magníficos desenhos que ele alguma vez havia feito.
O seu quarto era pobre, nada mais tinha senão a cama, a mesinha de cabeceira com a arma e um copo de água já meio baço, um pequeno guarda-roupa de duas portas (guarda-roupa este que já caía de tão podre que estava), e uma cadeira de madeira tosca com uma das pernas remendada com fita adesiva pois havia sido ruída pelos ratos que por vezes passeavam pelo quarto.
O nome do rapaz era desconhecido até para ele próprio. O nome que os pais lhe deram já há muito que ele esquecera pois de nada importava.
Podia ele ter sido um João, um Manel, um Bernardo, um Francisco, um Rodrigo, um qualquer como tantos outros; mas não. Foi, desde menino e sem o seu próprio consentimento, chamado de Miguel dos Santos. Mas, tal como disse, o seu nome não interessa nem para ele nem para a sua história. É de tão fraca importância que até na sua mente tal nome não existia.
Para si, e só para si, este “menino†chamava-se Eu.
E Eu e só Eu, pois ele não era outro Eu que não ele mesmo e porque em toda a sua vida ninguém além dele mesmo se preocupara com Miguel dos Santos.
Aliás, é essa a principal razão para ele ter, neste momento, uma Glock 30, pronta a disparar, na sua mesa-de-cabeceira cheia de pó (cheia de pó a mesinha de cabeceira, é claro, pois de todas as coisas que Eu sentia que deveria fazer limpar o pó, certamente, não era nenhuma delas).
Mas como dizia, a razão para Eu ter uma Glock pronta a disparar na sua mesa-de-cabeceira é propriamente o instinto (?) humano de não se preocupar com mais ninguém além de si mesmo.
Mas para entender isto é necessário que Eu faça, nos seus pensamentos, um retrocesso até ao derradeiro dia que o deixou entregue à tutela do destino e de outrem e deixou de ser Eu para ser “outro alguémâ€.

***

Foi num dia chuvoso, em que as nuvens pareciam pregadas aos céus e a chuva parecia não ter fim, que o Sr. Fonseca dos Santos e a sua família decidiram, ao contrário da sua habitual rotina de atravessar o Rio Tejo pela Ponte Vasco Da Gama, atalhar o caminho e atravessar o Grande Rio pela Ponte 25 de Abril (a ponte que menos tem a ver com tal data; ponte na realidade baptizada de Ponte Salazar e mais tarde encoberta com o nome da data da “revolução†para esconder os podres dos Portugueses.)
Entraram eles na ponte, então, pelo lado de Lisboa em direcção a Almada (com o Cristo Rei de braços abertos à chuva).
O mau tempo e a chuva pareciam ter afugentado os condutores portugueses das estradas e em toda a ponte apenas se encontravam três carros, dois deles na direcção contrária à do carro dos Santos.
A chuva adensava-se a cada segundo e o piso ficava mais escorregadio; o vento aumentava o seu sopro e os carros começavam a ter dificuldade a andar. Um trovão caiu no meio da ponte mesmo à frente dos dois carros em direcção a Lisboa. Um Peugeot 206 vermelho guina para o lado e embate violentamente num Fiat Uno desprevenido. O Peugeot levanta voo, atravessa os separadores e embate directamente no espelho do pequeno VolksWaggen dos Santos. Todos morrem menos Eu.
E foi este o derradeiro dia que deixou o menino Miguel dos Santos entregue ao destino e a ninguém mais que ele próprio.
E nesse mesmo dia Eu, com apenas 17 anos, foi entregue à guarda dos seus tios que viviam numa terrinha tão remota que nem mesmo o seu nome ficou recordado na mente de Eu. Nessa terrinha, nessa aldeia, nesse pequeno mundo perdido no meio do nada, nada havia senão uma igreja (onde todos os Domingos Eu era obrigado a permanecer durante uma manhã inteira ou mais – pois os sermões do Padre Ãvila pareciam prolongar-se mais a cada semana que passava), uma pequena mercearia (gerida pelo Sr. Manel e a Sra. Maria, um casal velho e já meio surdo mas extremamente simpáticos), um consultório médico (que abria apenas às terças-feiras), um talho e uma padaria (que abriam às sextas) e um posto dos correios (que abria apenas às segundas, de quinze em quinze dias).
Nesta terrinha, onde já nem os animais viviam, onde não havia electricidade nem água canalizada, onde ver a tinta secar era diversão, haviam também três habitações: a dos Silva, a dos Muñoz (uns espanhóis que por vezes lá passavam férias) e a dos Calados (nome que assentava bem no seu carácter pois eram pessoas de poucas palavras). Os tios de Eu eram os Silva.

Na tarde seguinte ao acidente, depois de uma noite atribulada com conversações com a polícia e órgãos dos média, Eu chegou à tal terrinha num autocarro que havia partido às 07.00. Este autocarro regressaria a Lisboa pela tardinha, às 19.00.
Claro que Eu poderia ter chegado mais cedo, mas o condutor era um senhor já de idade e certamente não havia feito escola e apenas sabia os números até 50 – a velocidade com que foi a viajem toda.
Assim que Eu pôs os pés fora do autocarro este abalou deixando uma nuvem de poeira a pairar no ar até assentar de novo no chão de terra batida.
Mais tarde Eu veio a saber que o condutor dirigia-se à Taberna do Calado, uma taberna que o Sr. João Calado tinha numa aldeia vizinha, para beber uns copos antes de voltar para Lisboa, mas por agora Eu ficou a pensar que arrancar assim “à papo-seco†era uma falta de educação.

Seguiu pela única rua existente que levava a um cruzamento com três saidas. Perto de cada uma das saídas estava um sinal indicando o seu destino. Eu seguiu pelo caminho da esquerda que indicava ser o caminho para os Silva.
O caminho era ainda de terra batida e Eu já perdera qualquer esperança de ver qualquer indicador de que o mais infimo tipo de tecnologia alguma vez passara por estas terras sem nome.
Depois de vinte minutos de caminho silênciosos Eu deu de caras com um casarão enorme de dois andares. A entrada era ampla, com uma porta de madeira finamente ornamentada assente no meio de um arco de estilo gótico. As janelas eram todas elas, também, ornamentadas, e todas elas tinham os vidros sujos. Por detrás dos vidros Eu conseguia ver cortinados meio rasgados e meio inteiros, meio compridos e meio curtos, mas todos eles completamente sujos.
Eu aproximou-se da porta e bateu três vezes.
Nada. Nem a mais infima resposta, nem um "Já vou!" nem um "Quem é?" nem nada. Silêncio absoluto. Eu voltou a bater, desta vez com um pouco mais de força mas para o mesmo efeito. Ninguém lhe respondeu, ninguém lhe abriu a porta.
Meio confuso, meio sem saber o que fazer, Eu resolveu procurar alguem nos arredores da casa, possivelmente um criado ou um jardineiro, talvez até um porteiro ou um guarda, com sorte até os seus tios. Mas nada. Duas vezes contornou ele a casa (passando por um enorme jardim que havia nas traseiras) e nada encontrou. Nem a mais pequena alminha, nem o mais reles animal.
Não está cá ninguém, pensou, será que devo ir embora?
Mas os pensamentos foram rapidamente quebrados pois, quando pela terceira vez se aproximou da porta da entrada reparou que estava entreaberta.
Sentindo-se estúpido e, no entando, intrigado - pois tinha a certeza de que a porta estava fechada - Eu abriu o resto da porta e espreitou lá para dentro.
- Está cá alguém? - gritou, meio baixo meio alto. - Boa tarde! Está cá alguém?
Mas ninguém lhe respondeu. O silêncio sobrepunha-se a tudo de uma forma estranha e algo mistica. Nem sequer ouvia os seus passos conforme entrava pela casa dentro. A entrada era bastante simples. Não havia nela nada além de uma pequena mesa e uma cadeira. A meio havia uma grande escadaria que dava para o primeiro andar. Em cada um dos lados encontravam-se duas portas, todas elas da madeira mais comum e do design mais rasco. Pelos vistos apenas o exterior era agradavel, apenas o exterior tinham "aquele encanto".
As aparências iludem, pensou Eu, rindo-se. Iludem bastante.
Eu avançou para a escadaria carregando todos os seus pertences. Estava decidido a explorar mais a casa e encontrar um quarto onde pudesse, pelo menos, passar a noite. Amanhã seria um novo dia e poderia regressar a casa. Mas assim que se aproximou do primeiro degrau uma voz anasalada rasgou o mistico silêncio.
- Quer um quarto?
Eu olhou para trás. Sentado naquela cadeira de madeira rasca estava um homem pouco maior que a própria mesa. Sentado como estava parecia mais uma criança pois os seus braços mal chegavam ao topo da mesa onde agora estavam um bloco de notas e uma caneta. Os seus cabelos eram cor de prata e bastante curtos. As suas sobrancelhas eram grossas a farfalhudas e o seu nariz comprido e adunco. Tinha um ar estranho e misterioso. Nem parecia humano.
- Quer um quarto? - repetiu o homem numa voz de extremo desagrado.
Eu saltou de surpresa.
- Eu sou(...)Venho à procura dos meus tios, o sr. e a sra. Silva.
- Ah, menino, porque não disse antes? - o pequeno homem saltou da cadeira para o chão e caminhou em direcção a Eu num passo apressado e meio saltitante. - Os seus tios não estão cá. Foram almoçar a casa dos Calados. Já à meses que foram convidados mas como os Calados são uma familia que pouco fala eles normalmente têm sempre um almoço particularmente aborrecido. O meu nome é Fernando, Fernando Junqueiro. Sou o porteiro, criado, guarda, jardineiro, cozinheiro, tudo aquilo que o senhor quiser que eu seja.
Eu levantou as sobrancelhas ao ver o Sr. Junqueiro aproximar-se. Era como que se um pequeno animal reles rastejasse pelo chão até ele. Era uma sensação desconcertante que Eu interpretou como sendo puro nojo. Quando o homem finalmente chegou junto a Eu (o que demorou pois a entrada era grande e as pernas dele pequenas), o Sr. Junqueiro esticou a mão para o cumprimentar. Eu soltou um sorriso pouco afável e abanou a cabeça em consideração mas nada mais. Era-lhe repugnante a ideia de tocar naquele homem que mais parecia um animal vadio. Olhando mais atentamente notou que as calças do Sr. Junqueiro estavam cheias de terra e folhas soltas. Tinha no bolso direito das calças um imenso conjunto de cháves, no bolso esquerdo uma lanterna, no bolso de trás uma colher de pau. Era como que todas as profissões antes enumeradas saltassem para dentro de uma unica personagem e se fundissem umas com as outras dando origem a este ser meio repugnante.
Eu facilemente compreendeu que o seu estatuto era maior do que este porteiro, criado, guarda, jardineiro, cozinheiro, e tomou uma posição mais altiva.
- Quero um quarto. O melhor que tiver. - disse num tom ditatorial.
- Pois com certeza, menino. O melhor quarto é, evidentemente, o do Mestre Silva, mas o segundo melhor quarto será seu.
- Muito bem, onde fica?
- Suba as escadas, menino, vire à sua direita. No fundo desse corredor encontrará outro corredor para a esquerda. A meio desse corredor estará uma porta já aberta. É esse o seu quarto. Mas eu mostro-lhe, menino, eu mostro-lhe.
O Sr. Junqueiro aproximou-se ainda mais de Eu pousando-lhe uma mão no fundo das costas como que para guiá-lo pela casa. Eu deu um grande saltou e afastou-se dois ou três passos para trás.
- Não, deixe estar. Eu encontro. Não há problema.
E pegou nos seus poucos pertences e subiu as escadas. Quando chegou mesmo ao cimo olhou de relance para o andar de baixo como que para ver se não estava a ser seguido pelo Sr. Junqueiro. Mas não estava lá ninguém. A mesa estava de novo vazia e a porta já estava fechada. Nada lá havia além daquele silêncio desconcertante.
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Dionísio Dinis
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« Responder #1 em: Janeiro 13, 2010, 20:03:16 »

Um texto completo e acabado de bom.Muito bom mesmo!Bravo!
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« Responder #2 em: Janeiro 13, 2010, 20:28:03 »

Uma vida que Eu tem, tinha... nada invejável. A qualidade da sua escrita, essa sim, é invejável!
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Goretidias

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Dionísio Dinis
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« Responder #3 em: Abril 16, 2011, 10:14:18 »

Vale a pena ler de novo.
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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