(...Os acontecimentos de 23 de Janeiro de 1961, são relatados na emissora nacional, pela primeira vez, passam escassos minutos da meia-noite).
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Linda está agora deitada na cama do hospital. O negro que antes a envolvia não existe mais, a luz é difusa, amarelada, um forte cheiro a éter paira no ar, a calmaria do ambiente que se encontrara horas antes, quando a ambulância a deixara à porta principal, de repente, de uma forma inexplicável, quebra-se. Os murmúrios e o bichanar nas salas contÃnuas elevam-se gradualmente. Linda apercebe-se de que algo de muito estranho se estava a desenrolar.
A curiosidade aguça-lhe os sentidos, quer saber, quer participar, mas não pode, contudo. Está fora do seu ambiente, no meio de estranhos envoltos em batas brancas e, ao invés das tias e das primas, estes pouco se interessam pelo estado do seu ventre, pelas dores que a cada momento vêm e vão mais rápidas. Só um pequeno objecto, em cima da mesa do canto, parece colher as suas atenções. Os corpos vão-se acotovelando, sobrepondo, sentidos alertas, suspensos à s palavras parcas da emissora. Desejam-se notÃcias, detalhes, pormenores.
Repentinamente, como um trovão, o ventre abre-se, refulja. Linda grita, perde o controlo, clama socorro, invoca os mortos e os vivos, abre-se. Um lÃquido quente inunda-lhe o baixo-ventre, ensopa-lhe a cama, algo nunca sentido a atravessa como uma espada, arqueja, agarra-se à s barras da cama de ferro esfolada e velha, deixa que aquele mar a invada sem medos.
No alto mar, a trovoada faz-se sentir, o paquete inclina-se perigosamente numa curva de cento e oitenta graus, os gritos dos mareantes juntam-se aos dos tripulantes, o comandante acalma as hostes.
O médico aproxima-se rapidamente da cama, a parteira afasta as pernas num ângulo raso, uma pequena cabeça irrompe pelo orifÃcio massacrado, a parteira recebe-a com ambas as mãos, roda-a lentamente “força, rapariga, faz força agora, disseram-me que eras valente, onde está essa garra e essa genica?â€.
Afaga-lhe o ventre refulgente, como se de um melão se trata-se, segura-lhe as costas, impulsiona-lhe o corpo, fala manso, com uma voz quente e segura, a sala é invadida por mil espÃritos. Linda invoca os seus, chama pelo pai, pelo avô, por todas as suas perdas, confia-lhe o seu tesouro, fecha os olhos e deixa-me conduzir. Nesta passagem, como nas que se seguiriam, sente que não está sozinha.
Sorri. Duas grossas lágrimas sulcam-lhe o rosto, misturaram-se com o suor, com o sal que vem do mar, do mar de Lisboa, na espuma das ondas, de um mar revolto.
Lia, por fim, depois de mais de cinquenta horas de luta, desperta para a vida, envolta num manto de emoções contraditórias.
Nasce negra, muito negra, de muitas e muitas horas de sofrimento. O corpo minúsculo não reage, não solta um choro.
“Maria Santa, chamar-se-á Maria Santa†– assevera a parteira, imbuÃda com o espÃrito da aventura daquele dia – Santa Maria. “Fedelha, estás a ouvir, Maria Santa?... Reage, chora"! ...
Não que não queria! Lia não queria chorar! E choraria tanto, tanto, ao longo da sua vida, desta vida que agora se (re)acendia num corpo branco e numa alma retinta... ninguém viu, deu sinais, mas nunca ninguém viu... era negra, de pele branca vestida. Sorriu... ninguém viu!
Elevam-na, a parteira segura os pés, o corpo de cabeça para baixo – foi daà certamente que lhe ficou o vÃcio – o mundo à s avessas, tudo ao contrário.
As mãos encontraram as suas pequenas nádegas, a dor impulsionou-lhe o ar, os pulmões abrindo, o choro a invadir a sala. Linda olhava agora aquele ser minúsculo: uma menina. A sua menina. Negra (todas as andorinhas têm uma face negra).
Lia era uma andorinha num corpo de menina. Mas isso só saberia muito mais tarde, na longa viagem da sua existência.
Contrariando o desejo do médico e da enfermeira, a criança não seria Maria Santa, em homenagem ao paquete, e aos heróis de cuja vida pouco saberia durante os primeiros vinte anos da sua existência, mas Lia, como a madrinha. Também não seria Mavilde Celina, como Linda desejava, nem sequer Ana Maria, para glórias do pai, mas Lia. Apenas Lia, um pequeno nome seguido de um nome enorme, com “des†e tudo… e, contudo, curiosamente, aquele nome, o que desejara para a sua filha, era um nome Africano.
“Não há coincidênciasâ€...
(continua)
in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentido"