Mel de Carvalho
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« em: Janeiro 22, 2008, 21:13:42 » |
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(… Apenas Lia, um pequeno nome seguido de um nome enorme, com “des” e tudo… e, contudo, curiosamente, aquele nome, o que desejara para a sua filha, era um nome Africano. “Não há coincidências”). _____
Rumo a Port Everglades, na Florida, o Santa Maria havia prosseguido a sua viagem, agora já sob o comando dos homens fiéis a Henrique Galvão. Tal como com Linda - cuja rota fora alterada à última hora, fazendo com que, e contrariamente a tudo o que estava estabelecido, rumasse rumo a Lisboa para dar à luz a sua criança - , também o Santa Maria vê alterado o seu rumo agora para Leste, aproximando-se da Ilha de Santa Lúcia. Seria porventura esta manobra comprometedora do êxito final, a verdade é que, ao desembarcar dois feridos e cinco tripulantes, Henrique Galvão, colocara em causa a possibilidade de atingir África sem ser detectado, o que viria a acontecer efectivamente, no dia 25. Ao cruzar-se com um cargueiro dinamarquês, o Santa Maria trai a sua posição e, em consequência, é localizado por um avião norte-americano, sem ter conseguido chegar a bom porto: África.
O nome de origem africana. “Mavilde Celina”. África, para onde deveria ter rumado o Santa Maria, África para onde rumam todos os anos as andorinhas. Lia era uma andorinha num corpo de menina, sim! Percebeu tudo isso muitos, mas muitos anos depois. Então, havia sido, noutro tempo, num tempo para além do tempo “Mavilde, Mavilde Celina”. Um nome, uma melodia... Curioso, tão curioso …ouvia agora claramente... "Celina, Celina..." Uma estranha melodia …
A vida, Lia, a vida e o passado, não se esquecem de nós! Jamais.
A prova, outra prova! Então havia sido Celina... e agora Ana, sua filha, dizia-lhe que, se um dia fosse mãe de uma menina, esta seria “Melina"... Ana nem sabia desta estória... a proximidade fonética … espantosa.
A vida passa a linhas escritas, num papel, o que deixa para além das brumas, das neblinas, nos confins dos tempos. Numa intemporalidade desconhecida.
O comboio em movimento.
Lia projectava esta história nos vidros embaciados da carruagem e, levemente, o pensamento esvoaçava... Estava em África, brincava com outros meninos, dançava nua, era feiticeira, era maga... Era negra, negra retinta, com olhos de safira! Mergulhava num mar verde, num mar de corais... e era feliz!
Fechava os olhos e via-se claramente, correndo pela selva conhecida, sempre seguida do menino da sua vida. “Corre Lia, corre, que te apanho... vou apanhar-te”. Apanhava. Ela ria, ria tanto. E fugia, fugia de novo. Ela era a Lua Fugidia. E ele? Ele era a outra voz. O outro lado dela mesma! Era o rio, era a selva, era a tarde em que se embalava. Lia era feliz ... em África. Convivia com os animais, falava a língua dos animais. Não tinha medo, não estava parada num corredor da vida, não seguia trilhos alinhados, num comboio de freios mal lubrificados. Era vento, era chama, seguia a garra do instinto, abria caminhos, abria a pulso, a dente, as lianas da sua vida. Enleada, ouvia o chilrear dos pássaros. E passava, passava sempre. Lia era uma menina guerreira, lutadora, tinha sonhos. Em África, era feliz.
No comboio em movimento. Sentia o nó, o aperto... o filme chegava ao fim... terra queimada, sanzalas destruídas, vidas e corações separados... O seu, ficara lá? Não sabia... onde estava? Lentamente, num gesto desolado, com a mão aberta, limpou o vidro numa circunferência ovalada, espreitou, leu as letras ... Estava em Entrecampos.
Uma circunferência ovalada! A oval, a circunferência distorcida! A circunferência – uma recta unida. A recta – segmento de recta: a união de pontos, prolongada até ao infinito. E um corpo em “Pi”. O que era mesmo o “Pi”? Aulas de geometria, de geometria descritiva, as linhas feitas a tinta-da-china, sobre o papel cavalinho. Um cavalinho branco – que nunca tivera -, nem um príncipe alado, para a levar, Fada Morgana, Feiticeira Meldemim, para as Brumas de Avalon... Sorria! Ou um cavalo guerreiro, num campo de batalha em África. Era guerreira! Claramente!
A 2 de Fevereiro, o "Santa Maria" ancorou no porto brasileiro do Recife, procedendo ao desembarque dos passageiros e tripulantes. A 2 de Fevereiro, Linda deixou por fim o hospital e fundeou âncora no sopé do planalto que a vira crescer… e onde Lia se faria mulher. “Não há coincidências” …
A 4 de Fevereiro, em Luanda, deflagram incidentes graves, seguidos, em Março, do início da guerra no Norte de Angola, que obrigaria o Governo de Lisboa a uma tomada de posição, nomeadamente com o envio de reforços militares. Em Abril embarcam os primeiros contingentes de mancebos, visando proteger as colónias…
Lia mulher viajava agora… Entre campos, a sua essência dividida. Um pé em cada Continente. Não era deste tempo, não era desta Era, e nem sequer era deste corpo. Entrecampos. Estava entre campos...
in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia do sentidos"©
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