Mel de Carvalho
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« em: Novembro 30, 2009, 14:43:47 » |
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HĂĄ muito tempo atrĂĄs, nĂŁo existiam andorinhas na minha vida!... Minto!... Existiam as que, penduradas de asas abertas, contra a parede branca, enfeitavam a casa da minha infĂąncia. No VerĂŁo, quando o Sol impunha a limpeza e o aprumo, tambĂ©m elas eram conduzidas a um mergulho reparador, num qualquer alguidar de barro ou celha. Na minha inocĂȘncia imaginava o sofrimento a que eram votadas, horas a fio, de molho â barrela como se dizia Ă Ă©poca -, a granel com um infindĂĄvel nĂșmero de objectos diversos, de decoração: azulejos pintados com dizeres, borboletas de barro, flores de plĂĄstico, etc., todas aguardando a vez de serem devolvidas ao seu lugar, nĂŁo sem antes a parede ter recuperado o alvo da sua dignidade, recoberta com cal a largas pinceladas. Nessas tardes de estio, introduzia as minhas mĂŁos de menina na ĂĄgua suja, onde estavas mergulhada, tacteava e procurava-te. Procurava-te! Conhecia-te os contornos, o volume, o tamanho. Distinguia-te, de todos os outros objectos submersos na barrela. Conhecia-te a forma, de tantas horas que te admirara ao de longe, suspensa que estavas sobre a porta principal. Tal como as tuas irmĂŁs, tambĂ©m agora mergulhadas e submersas, tal como elas, tinhas a parte superior negra, negro profundo, reluzente ao Sol, reflexos azuis, uma cauda em âVâ, com filamentos fulgurantes. O teu lado negro... O lado branco - o peito, a parte anterior das asas, tal como a barriga, o ventre, as entranhas -, a mim parecia-me sempre levemente rosado. Branco rosado!... Mas o que te tornava Ășnica, era sem dĂșvida a face avermelhada, ruborizada! Em resultado da minha admiração constante, imaginava! E, era essa a magia que nos unia. A tua inocĂȘncia de andorinha, a minha inocĂȘncia de menina... A tua beleza, essa, encantava-me, fascinava-me, diria agora, volvidas tantas Primaveras... Quando estavas suspensa â inacessĂvel aos meus afagos, mirava-te e remirava-te... Desejava que um golpe de vento, uma brisa da tarde, te fizesse tombar no meu regaço. EntĂŁo colocava-me de bibe azul cĂ©u aberto, por debaixo do teu poiso, para que o tombo te nĂŁo fosse doloroso. Mas nĂŁo, tu continuavas lĂĄ, no teu lugar de sempre, e eu voltava, dia apĂłs dia, para te admirar e tu, acho agora, esperavas o fim da tarde para os nossos reencontros. FalĂĄvamos uma linguagem desconhecida dos comuns mortais â a lĂngua das âmeniavesâ num cĂłdigo sĂł nosso, onde os silĂȘncios e os tempos se mediam para alĂ©m dos compassos dos relĂłgios â do relĂłgio de cuco -, que lĂĄ na sala grande trinava (impondo o meu regresso Ă famĂlia), do relĂłgio do torreĂŁo da aldeia, com as suas oito badaladas â a hora do jantar! Nesses tempo em que a linguagem era âmeniaveâ, imaginava ter-te nas minhas mĂŁos de menina, aconchegar-te no meu calor, no calor do meu peito, como fizera um dia com o estorninho bebĂ© que caĂra do ninho... Mas nĂŁo! Durante meses a fio, permaneceste sobranceira, colada Ă parede, indiferente ao chamamento do meu coração... De repente, ali estavas tu, na celha de lavagem, quase a fundares-te num mar revolto. NĂŁo por um golpe de vento, ou uma brisa... pela mĂŁo dos homens, pela mĂŁo de uma mulher, talvez... Nessa tarde de estio, finalmente, encontrava-te! Tomava-te nas minhas mĂŁos, afagava-te lentamente, retirava-te o excesso de ĂĄgua, que te havia inundado as entranhas, colocava-te em ĂĄgua limpa, retirava-te os restos de sujidade, com um infinito carinho, um imenso cuidado.... de leve, de mansinho.... sem pressa, como sĂł as crianças sabem tĂŁo bem fazer.... Limpa, resplandecias ao Sol! O brilho azul azeviche das tuas asas abertas, ofuscava-o, diminuĂa-o aos meus olhos, como que me cegavam de tanta beleza. Paralisavas-me os gestos, fazendo com que tudo o resto, se perdesse para alĂ©m do agora. Recordo que nessa tarde, por breves instantes, cerrei os olhos e desejei que me levasses para o teu Mundo, feito de argila e pĂł.... Cerrei os olhos, nĂŁo sem antes te aconchegar no calor da minhas mĂŁos, dispostas uma sobre a outra em concha â uma espĂ©cie de ninho de amor, branco e imaculado, tal como a parede a que desejavas voltar a ser suspensa, a parede para a qual, a qualquer instante voltarias a voar... Cerrei os olhos, com força! Cerrei os olhos e os dedos, que aos poucos, se foram entre-juntando, entre-cruzando, numa malha humana, aprisionando a minha andorinha. Sempre de olhos cerrados, desejei que aquele momento fosse para sempre.... A minha andorinha era, naquele instante, prisioneira do meu ser! As minhas mĂŁos de menina, haviam apreendido uma força da natureza! Um ser minĂșsculo, que viajava dias a fio, em busca de um poiso seguro para construir o seu ninho... Desejei que aquele instante nĂŁo acabasse, que, para todo o sempre, no tempo dos tempos, menina e andorinha se fundissem em unĂssono, sob o Sol de VerĂŁo. Aprisionei-te com tanta força, que as marcas das tuas asas, ficaram marcadas em forma de âVâ nas palmas das minhas mĂŁos... Mas nĂŁo! ⊠NĂŁo consigo imaginar sequer uma razĂŁo e contudo, sob a minha pele quente pelo Sol de VerĂŁo, as tuas asas de barro, aos poucos começaram a tomar vida, começaram a debater-se com a energia do amanhecer... Recordo como o teu peito, contra a palma da minha mĂŁo esquerda, arcava, e como o teu bico irrompia pelo orifĂcio formado pelo polegar e indicador... Como do teu bico, mudo atĂ© aĂ, aos ouvidos dos humanos, saiam os primeiros acordes, algo desafinados, algo incongruentes... Certo, certo Ă© que a minha andorinha, ganhara vida! E a vida Ă© sempre um dom. Eu tinha, com o meu amor, dado vida a uma andorinha, tinha-lhe dado um dom. Ao de leve, deixei que o seu corpo recĂ©m nascido, saĂsse de mim, das minhas mĂŁos. Ao de leve, muito ao de leve, como uma brisa de fim de tarde, impulsionei-te o voo, nĂŁo sem antes te falar dos hĂĄbitos das andorinhas de verdade a que, a partir de agora, passaras a pertencer. Falei-te de como as andorinhas vinham do sul, em longos bandos, de como eram âaprendizes atĂ© ao Ășltimo bater do coraçãoâ... Recordo como esta frase teve impacto e de como ficas-te, durante breves instantes suspensa da minha estĂłria... âSim, minha andorinha, as tuas irmĂŁs sĂŁo animais gregĂĄrios, vivem sempre em comunidade... vais ter que, tambĂ©m, desenvolver capacidades comunitĂĄrias... vais ter que percorrer grandes distĂąncias, sempre em bando, sulcando os cĂ©us, sobre os Oceano... numa espĂ©cie de trapĂ©zio sem rede, sem um bibe azul de menina, para te apoiar ...â E continuava...âSim, minha jovem andorinha, as tuas irmĂŁs sulcam os cĂ©us, dispostas em âVâ! âVâ de âvitĂłriaâ, âVâ de âvigĂliaâ, âVâ de âvigorâ... âVâ de âvidaâ... AĂ, acho que aĂ, pela primeira vez, vi o teu lado negro: âVâ de....âVingançaâ!... disseste-me! De que te querias tu vingar?... Do tempo que havias passado aprisionada Ă parede branca, por um prego de metal? De tanto tempo aprisionada num corpo de barro? O meu amor libertador nĂŁo era suficiente para te ajudar? âVâ de vingança!!â - repetias! âNĂŁo, minha jovem andorinha, essa Ă© uma palavra que nĂŁo existe no vocabulĂĄrio das andorinha....â âVâ de âverâ... Ver mais longe, ver para alĂ©m de ver, âVâ de âvigorâ... âVâ de âvĂcioâ, insistias! âVâ de âvergonhaâ...vergonha por viver num Mundo de faz de conta, viver uma vida que se nĂŁo desejou, um abandono que nos conduz ao âVâ de âvaletaâ, ao âVâ de âVale ou vale...quase tudoâ ... Numa vida onde sĂł existem âvencidosâ, poucos sĂŁo os que desenvolvem voos de âvencedoresâ... onde a palavra âverdadeâ sĂł raras vezes tem âvalorâ...âVâ de âvaidadesâ, vaidades que comandam vidas, âVâ de âvexameâ a que somos todos os dias submetidos .... âVâ de âvicioâ, insistias... ââVâ de vingança!!â Sentia as tuas asas a debaterem-se, a agitarem-se, numa rebeldia inconsolada, inconformada.... dorida.... âNĂŁo, mil vezes nĂŁo, as andorinhas da nossa estĂłria - as de que te quero falar - nĂŁo conhecem vĂcios; as andorinhas de que te quero falar, desenvolvem o seu voo em vĂȘ, em sinal de âvirtudeâ â virtude de dar e receber, virtude de partilhar, amparar, ajudar!... Sempre, baixinho, insistia: âSim, porque as andorinhas, sĂŁo seres gregĂĄrios, que vivem predispostas a partilhar, a viver juntas, a gerar famĂlia, a amparar a famĂlia, a amparar-se na famĂlia... Uma andorinha, pode atĂ© morrer de solidĂŁo, nĂŁo resistir Ă solidĂŁo de um ninho vazio e frio... A solidĂŁo, ou a prisĂŁo, tĂȘm o poder de matar! Na verdade, estas criaturas, nĂŁo sobrevivem sĂłs ou prisioneiras: de si mesmas ou dos outros. Quando tal acontece, em cativeiro, creio que encetam longos voos dentro de si mesmas, mascarados de silĂȘncios finos. Ausentam-se de si e do Mundo, do Mundo que as aprisionou... Entendes de que falo, minha jovem andorinha? Quando estavas suspensa na minha porta, presa por um prego, que te atravessava as entranhas, confesso agora, ter visto, nĂŁo raras vezes o teu dorso manchado de lĂĄgrimas que tombavam dos teus olhos escuros... Eram saudades, imaginava! De Ăfrica! Do colo que todas as andorinhas buscam e necessitam... por isso desejava que tombasses sobre o meu bibe azul, para te poder dar um pouco do meu colo de menina...â No dia em que impulsionei o teu voo, senti que te estava a perder para sempre! Tive medo de que, Ă distĂąncia de um Oceano, nĂŁo me lembrasses mais. E, contudo, corri o risco! Correria o risco de novo, uma e outra vez...â Durante os meses que se seguiram, ao dia em que deste o teu primeiro voo, ensaiavas, voando cada vez para mais longe, durante horas a fio, a tua grande viagem, a que te levaria, para longe de mim pela primeira vez. Durante esses voos de treino, que eu observava da minha varanda virada a sul â o sul que tu buscarias no final do VerĂŁo -, caçavas em voo, alimentavas-te nos cĂ©us e, sĂł voltavas no fim do dia, aquele que fora durante tanto tempo o âteu pequeno Mundoâ. Aos poucos, o frio foi-se aproximando, os dias foram-se tornado mais pequenos, a bola de fogo, caia cada dia mais cedo no horizonte... Tudo em meu redor se preparava para a nossa despedida! Nessas tardes, vinhas poisar ao de leve, muito ao de leve, no beiral da minha vida. Juntos, traçåmos planos para o teu futuro, juntos contemplĂĄmos o Sol poente... uma e outra vez, ora em longos silĂȘncios, ora a espaços, no dialecto meniave... Sei que recordarĂĄs para sempre as nossas conversas na lĂngua meniave.... E que, um dia, em jeito de estĂłria, aos filhos que a vida te reservar falarĂĄs do dia libertador... E talvez lhe mostres um pequeno tesouro â um fio de ouro que levaste dos meus cabelos... Nas vĂ©speras do dia em que haverias de partir, falei-te uma vez mais, da importĂąncia de voar em grupo, em bando. Poisada no meu ombro direito, bem perto do coração, ouvias o meu discurso embalada na sua musicalidade... â... O bater das asas de uma andorinha, ajuda a outra que se lhe segue, e assim sucessivamente... A primeira rasga caminho, fazendo com que, a corrente de ar ascendente impelia as restantes a prosseguir â dizia-te de mansinho... Mas o mais importante, minha jovem andorinha, Ă© a certeza de que, uma vez cansada - porque a distĂąncia entre Continentes Ă© imensa -, poderĂĄs sempre contar com uma segunda para te substituir no comando do voo, e que a segunda contarĂĄ com uma terceira, e assim por diante, numa cadeia de solidariedades... Na verdade, minha jovem andorinha, esta Ă© a regra de sucesso no reino das andorinhas, no rumo das andorinhas! A certeza de que nĂŁo estĂŁo/estamos sĂłs, o sentimento de que, atrĂĄs de nĂłs, um bando inteiro nos impulsiona o voo, apoia o rumo que conferiremos Ă nossa vida!...â Ouviste a minha estĂłria, muito quieta, imĂłvel, muda.... Viajaste dentro de ti, como quando estavas prisioneira... E tiveste medo!... Aninhaste-te de encontro ao meu colo, afaguei-te o corpo, recompus-te as penas em sobressalto... Olhaste-me profundamente, bem no fundo dos meus olhos â verdes, azuis, cinzentos: Verdes-ĂĄgua, azuis-cĂ©u, cinzentos de fim de tarde. Verdes mar â o mar que nos afastaria para sempre, o cĂ©u que haverias de sulcar o cinzento que deixarias na minha vida... Sei que, naquele instante, duvidaste de tudo o que te dizia. Como poderia uma menina de cabelos de oiro, saber das vidas das andorinhas, dos sonhos das andorinhas, das expectativas das andorinhas? Duvidaste! Sei que duvidaste.... A tua asa afagou-me ao de leve os cabelos, o teu bico debicou-me o pescoço, na base da minha nuca.... Os cabelos de oiro, sob o sol da tarde eram agora prata... O teu bico aprisionou um fio e partiste... Juntaste-te com mais de cem andorinhas, nos fios de telefone nesse fim de dia e, de manhĂŁ, com o raiar da aurora, partiste! Partiram todas, juntas.. Partiram em vĂȘ... Tu a comandar o voo, a comandar o vĂȘ... como tanto desejavas!... Acompanhei-te atĂ© onde os meus olhos conseguiram alcançar. Depois, de mansinho, chorei a tua partida, num choro invisĂvel aos olhos dos comuns mortais. Chorei e rezei por ti, noites a fio, quando a bola de fogo entrava pelo mar dentro e tudo ficava bruma, silĂȘncio e nada mais! Recebi notĂcias tuas, no outro dia, por outro pĂĄssaro migrante!
Em Ăfrica, quando construĂste o teu ninho, de barro vermelho, a cor da tua terra, amassado com o calcorrear dos pĂ©s da tuas gentes, no fazer constante de caminhos, caminhando, desse barro, terra/suor/dor â fizeste o teu ninho: um ninho de amor. Nele entrelaçaste, para sempre, um fio de ouro/prata...
Confidenciou-me, esse påssaro migrante que reluz ao sol dos trópicos, distingue-se de todos os demais... De todos, o mais lindo, o mais perfeito, que tem até alguma inveja, de não ter um ninho assim...
Como que por magia, o fio de prata atravessa oceanos. Em cada Primavera que nasce, eis que de novo, na ponta do teu bico, sulca os cĂ©us e une Continentes, ligando o teu ninho a um novo ninho onde geras famĂlia, e tudo começa de novo.
E assim, ano a apĂłs ano, sĂ©culo apĂłs sĂ©culo, se repete a lição das andorinhas, que se baloiçam num trapĂ©zio sem rede â numa rede invisĂvel de mil fios de prata e ouro, prata e preto, preto e prata. As andorinhas afinal tinham um lado branco!...
Abri os olhos. Senti o corpo da andorinha de barro nas minhas mãos... De asas abertas em sinal de "V"! Fora um sonho, um sonho de libertação de uma andorinha em cativeiro!
Lx: 2004 ___
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