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Autor Tópico: A menina dança?...  (Lida 3832 vezes)
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« em: Dezembro 02, 2009, 14:08:34 »

Ouvia-o já como se seu não fosse. Irritava-se que batesse. Que batesse ainda. Umas vezes em fúrias arrítmicas e outras, de uma forma tão serena, tão doce, quanto uma tarde de Inverno à beira de um rio de águas cinzentas.

Questiona-se tantas vezes porque ainda não deixara de bater. Porque não poderia ela, à semelhança de outras partes de si, prescindir dele, sem mais? Como os dentes, que já não tinha, por exemplo. Afinal não passava de um músculo. Um mero propulsor de sangue, vestido de túnicas sucessivas. Como uma bailarina em pontas.
Ai a dança, a dança…
Ainda presente as lições do corpo humano, a sala inteira:
- ... pericárdio, miocárdio, endocárdio, outra vez… mais alto…, pericárdio, miocárdio, endocárdio,
ou
- aurículos, ventrículos… aurículos, ventrículos…

Era o tempo em que o coração era o que era e nada mais. Tempo finito, deu-se conta bem cedo, no dia em que
- A menina dança? Psi, psi … A menina dança?...
fez com que o dito músculo, se tornasse de súbito incontrolado. Descompensado e, quase juraria, entoasse mais alto que quaisquer instrumento em palco. Afinal, razão tinha a professora quando lhe falara que se tratava de um “músculo involuntárioâ€.

- Branca, no corpo humano existem duas espécies de músculos: voluntários e involuntários. Os primeiros, tu dominas com a vontade, com a razão, com o que te ensina a moral e os bons costumes… tu dominas as mãos, os pés, como sabes. Tu dominas os movimentos através do que te é dito pelo sistema nervoso central, mas Branca, tu não dominas, por mais que queiras, a quantidade de batidas do teu coração… ele é um músculo involuntário, caprichoso. Muito caprichoso, que, inclusivé, se mascara do ponto de vista da fisiologia com estrias, como se fosse do grupo dos músculos voluntários… sabes, não dominas os sentimentos. A saudade. A lonjura que o tempo não esbate… não, Branca, isso não se domina.

Nesses dias a professora parecia voar para longe. O olhar tornava-se mais negro, no azeviche do luto, do mosto dos lagares de uva tinta, das azeitonas sob as prensas. Tardava o regresso das palavras sábias, da ciência. A sala ficava suspensa num limbo nostálgico. Só as batas brancas eram ainda asas fulgurantes sobre as mentes. Como branco o nome de Branca. E ambos pareciam reflectir os últimos raios de sol daqueles instantes invernosos…
- ... repitam comigo, vá. Quero isto tudo na ponta da língua. Agora as válvulas: Mitral e Triscúspide…
É difícil, bem sei, mas recorram a mnemónicas (sabem o que é, já vos ensinei…). De novo, agora, tudo… pericárdio, miocárdio, endocárdio … aurículos, ventrículos… aurículos ventrículos… válvulas … o coração é um músculo involuntário…

Ele vinha, de um lado ao outro da sala.
Fato completo, sapatos de biqueira luzente. Cabelo puxado na brilhantina, anos sessenta.
Ela, de laço engomado na cabeça, de olhos baixos, fingia não perceber que o “menina dança†lhe era dirigido.
Ele insistia:
- A menina dança? … O dedo em riste. Sorriso calculado. Nem demais nem de menos. Como convinha. O embaraço. Dela. Os cochichos de Dália, atrevida, a seu lado…
- Branca, é o tal, o que estava no Domingo passado na leitaria… é tão alto, Branca… um figurino…não te armes em difícil, em pura donzela, que ele desiste …
- Dália, por favor, ele ouve…
- Que oiça. Eu ia, se ia … mas ele está é de olho em ti…
Ela também iria... Mas, e o medo? Da fama não se livrava. Mas havia que não dar crédito a falatórios de quem nada sabia. Gentes sem cultura, que se entretêm, só com a vida alheia. O meio era pequeno. Todos falavam de todos. Ele um gentio. Chegara à terra há meses, a bisbilhotice era, pois, natural ...
Por fim, após o compasso de espera, um olhar aprovador. Da mãe. E um “vai, mas olha o respeitoâ€. Branca avançava a pista.
As pernas bambas, a pele coberta de gotas finíssimas... Ai, o coração, esse, corcel sem nexo.
Avançava dois passos. Tímida, dava-lhe a mão, em ponta de dedos. Ele, engomado e tirado das caixinhas, cheirava-lhe, desde logo ao mirto dos dias proibidos. A pólvora dos dias de caça. Inebriava-lhe os sentidos, cantava-lhe ao ouvido a canção do bandido. Na cifra da música que alterava em sussurros de visco. O mesmo com que, nas noites de luar, na lezíria aberta, armava laços aos pássaros - estorninhos, tentilhões e etc.- , com que se haveria de lamber em tacho de barro. Fritos.
- Esta noite, ó pá, caíram mais de cinquenta. É proibido? E eu por acaso sei ler os avisos da venatória? Até sou analfabeto!!! Que se lixem esses gajos, se aparecerem por lá mergulho no Tejo, respiro horas a fio por uma palhinha. A mim nenhum arma o laço e, se me ensaboam os miolos, quando os apanhar de costas, papo-lhes as “passarinhas“… ossos e tudo…

Avançava. Da cintura fina, quando os pares se avolumavam no centro da pista, tacitamente descia-lhe por sobre a saia plissada. As mãos sobre as nádegas. Duras, moldadas ainda p’la candura. Ela corava, baixava mais os olhos. O coração, esse músculo irresponsável, arfava sob a blusa de bolinhas miúdas…E gostava.
Ou, quando, na valsa, por entre os passos, as pernas se tocavam. Os sexos adivinhados. O dele, incontido. Em poucos meses grávida. De flor de laranjeira e cauda, como mandava o figurino. Sem a bênção dos pais (os dela). Filha única, Maria Branca tinha de seu. Terras e casas. Ele apenas o Sol empinado nas calçadas. E a pretensão de fazer um belo de um casamento. Conseguido.
As lições do corpo humano na gaveta, o tempo passado. Filhos criados. Ela agora a rebuscar os restos no caixote do lixo.
- Cleptomaníaca, que pode um homem fazer? Não é necessidade, é vício, tem tudo em casa. Puta que a pariu. Nem de mola no nariz lhe toco. O que não me faltam são mulheres… ainda dou o meu pé de dança, ó pá, que julgas?

Uma estrondosa gargalhada ecoava o passeio marítimo. O sol descia. Era horas de voltar para casa. Branca já teria lavado e engomado, feito a janta.
- Logo joga a Liga. Vejo no café, que tem plasma. Também tenho, mas porra, a gaja fede que tresanda. Não fico em casa um minuto. Saio logo que posso. Com ela não me cruzo. Pudera, a mania de andar nos caixotes do lixo. Não precisa, como sabem… Desde que casamos que decidi não trabalhar para que pudesse dedicar-se a mim… que outra razão teria para viver, digam-me lá?…

Ouvia-o como se seu não fosse.
Irritava-se que batesse. Que batesse ainda. Perdera o controle de tudo e de si própria. Era agora, ela mesma, um "músculo involuntário", tomada de uma necessidade incontrolada de ver por dentro como os outros viviam… o que comiam, o que deitavam no lixo… se se amavam, se se possuíam…recolhia os sacos em pleno dia à vista dos demais. Então, em casa, abria-os e (re)vivia as suas vidas. Como as imaginava. Vivas. Plenas.
Ela morrera no dia em que pousara inadvertida no visco de uma armadilha.
- A menina dança???

A sirene dilacerava o silêncio. Sob a chuva miudinha, de pernas no ar, suspensa do caixote do lixo, dobrada pela cintura, Branca. Negra agora… nos lábios um sorriso, triunfal. Por fim, o tal tinha-lhe obedecido. Era agora um músculo controlado. A todo o custo. Finalmente.

- Está morta. Há que chamar a polícia. O senhor é o marido? … Supomos que se tratou de um AVC, mas só a autópsia o dirá...

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Mel de Carvalho
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Dezembro 02, 2009, 17:25:32 »

Engano dela, nem aí o controlou. Ele decidiu que era tempo, nada mais. Senhor do vida e da vontade, a ninguém obedece.
Beijo
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Goretidias

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« Responder #2 em: Dezembro 03, 2009, 02:44:40 »

Magnífico. Um poema trágico .
Meus respeitos
Geraldes de Carvalho
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Geraldes de Carvalho
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #3 em: Dezembro 03, 2009, 07:24:13 »

Goreti, minha amiga,
tens razão. Sequer ai o controlou. Até ao último suspiro de vida o dito permanece "músculo incontrolado".
Bj grata ela leitura

___
Caríssimo Geraldes,
Trágico, sem dúvida. Com um fundo de tanta verdade que chega a doer.
Os caminhos que conduzem ao desvio da personalidade, são, não raras vezes, "invisíveis" ao olhar apático dos que com os que tais comportamentos privam.
E, noutros casos, o que é muito mais grave, são tão, mas tão claros e, por comodidade, por conformismo, não são denunciados. E as mulheres (homens também, claro), morrem dia a dia em mortes lentas. Por dentro. Ou, como esta semana nos demos conta de mais casos, morrem, mortas mesmo. De morte feroz às mãos dos que um dia perante as leis dos homens e as de Deus, juraram amá-las. Aqueles com quem geraram filhos. Dá que pensar ...
Grata pela sua leitura amiga
fraterno abraço
Mel

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carlossoares
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« Responder #4 em: Dezembro 03, 2009, 07:44:55 »


Mel,

Independentemente dos sentidos literais, alegóricos ou metafóricos, que possamos encontrar neste texto, releva para mim sobremaneira a escrita "humanizada" e elevada, que me toca e me prende com a beleza poética, apesar de quase moralizante, ou por causa disso.
Gosto muito.
Abraço.
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Carlos Ricardo Soares
Mel de Carvalho
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« Responder #5 em: Dezembro 03, 2009, 07:52:47 »

Estimado Carlos Ricardo,
os contos, em especial os "contosdemulheres" que vou escrevendo, tentam abordar temas fracturantes da nossa sociedade. Podemos falar de tudo sem retirar a poesia que a vida encerra, digo eu... e, porque o digo, estimado C. Ricardo, tento transpor para a tela este meu olhar "poético". Se o conseguir, fico, obviamente satisfeita. Creio que a mensagem passará de melhor forma, de forma menos abrupta.

Gratíssima, CRicardo pela leitura e pelas palavras
Um abraço fraterno
Mel
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pedrojorge
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« Responder #6 em: Dezembro 04, 2009, 18:44:52 »

A experiência sobressalta desmarcadamente do Criacionismo.
Tem uma especulação muito interessantes dos tacs cardíacos.
Gostei.
Só invoco um erro que foi:"quaisquer instrumento" - é uma gafe simples de corrigir. E mais nada.
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Actually I don't remember being born, it must have happened during one of my black outs.
britoribeiro
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« Responder #7 em: Dezembro 05, 2009, 18:40:44 »

Um conto que merece palco. Parabéns!
Abraço
BR
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Bom domingo para todos.
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