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Autor Tópico: Nos Mares do Norte (2ª parte)  (Lida 2732 vezes)
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britoribeiro
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« em: Março 06, 2008, 16:48:39 »

Ainda era noite quando sentiu o arrastar dos tamancos e a cantilena dos “Louvados†que o homem de quarto usava para acordar os pescadores. Parecia que tinha acabado de se deitar. Levantou-se estremunhado, calçou as botas, vestiu a samarra e comeu um naco de pão da véspera e um púcaro de café que o novo “moço†da cozinha tinha pousado sobre a mesa.
Preparou o baú com a merenda, foi buscar a isca para ele e para o Raposo, subiu ao convés para ajudar a arrear os doris, primeiro os mais velhos, por último os “verdesâ€.
O céu estava encoberto e já se adivinhava alguma névoa. Com o nascer do dia iria levantar, era costume. O Capitão Maldonado tinha-os avisado: “Todos a pescar aqui perto, ninguém se afasta. Se tocar o sino, regressem de imediatoâ€.
Nem era preciso avisar, mesmo os mais afoitos não gostavam de se afastar do navio quando havia névoa.
O Chico aproximou o seu doris da embarcação do Raposo que lhe comunicou a intenção de pescar para lá da popa do lugre. Em poucos minutos estavam em posição, prepararam a isca, as linhas, o bicheiro e largaram os aparelhos. Estavam a pescar a menos de cem braças e quando alavam um dos aparelhos, os bacalhaus subiam regularmente à superfície, presos na armadilha do anzol, acabando a estrebuchar no fundo das frágeis embarcações.
A ligeira névoa matinal mantinha-se, o mar estava raso, quase estanhado, salpicado de pequenos doris em redor do “Senhora da Ajudaâ€, como a galinha vigiando os seus pintainhos.
- Tio Raposo, no aparelho que larguei por último, deu-me peixe maior. Ó Tio Raposo, está a ouvir?...
O silêncio reinava sobre as águas.
- Tio Raposo, que raio está a fazer, assim, de rabo para o ar?
Do pequeno doris do Raposo, suavemente embalado, não vinha resposta. O Chico alou as linhas que tinha na água, armou os remos e transpôs rapidamente a distância que os separava. Só via as costas do Raposo debruçado sobre o banco, como se procurasse algo no fundo do barco.
Quando encostou de bordo as duas embarcações, pode apreciar que o Raposo não se mexia e tinha a cabeça no chão. Passou um cabo de amarração e saltou com agilidade para o outro barco.
-Tio Raposo, que lhe aconteceu? – E puxou-lhe pelo casaco de oleado de forma a endireitar o seu velho companheiro.
A cabeça do Raposo pendeu sobre o peito e quando o Chico lha levantou pôde ver uns olhos abertos, mas vidrados e um fio de espuma que lhe saía da boca para o queixo. Largou-o como se queimasse, saltou para trás, tropeçou na caixa da isca, indo estatelar-se de costas sobre os bacalhaus recem-capturados.
O Raposo, sem amparo, voltou a escorregar lentamente até apoiar a cabeça no fundo do barco. Levantou-se a custo daquele leito forrado a peixe, aproximou-se do companheiro, voltou a endireitá-lo e procurou algum sinal de vida.
Tomou-lhe o pulso mas como tinha as mãos geladas, desistiu e decidiu-se a desabotoar-lhe o oleado e a samarra que tinha vestido. Tirou o gorro e encostou a orelha ao peito do Raposo, à procura do bater do coração. Não sentiu nada, mudou de posição, voltou a tentar sem resultado.
Sentia-se afogueado apesar do frio cortante que fazia essa manhã. Endireitou-se para acenar ao lugre, para avisar a situação do Raposo, e ficou pasmado com o manto branco de nevoeiro, que tudo cobria. Uma pequena brisa, na qual não tinha reparado, arrastava consigo o maldito nevoeiro.
Distraído no auxílio ao Raposo tinha-se esquecido de vigiar o céu e o mar. Que fazer? Olhou em volta, nada se via. Não tinha ouvido o sino do lugre. Já deviam ter tocado a chamar os homens e a orientá-los para a sua posição.
Os minutos seguintes passou-os num crescendo de angústia, procurando descobrir alguma referência entre as baforadas de nevoeiro que passavam. Suspendeu várias vezes a respiração para melhor ouvir um qualquer ruído que o orientasse. Nada! Absolutamente nada! Não via, não ouvia nada fora dos barcos, amarrados um ao outro.
Saltou para o seu, pegou nos remos, orientou-se pela agulha de marear que o contra mestre Antunes lhe tinha confiado. Tinham-se posicionado a oeste do lugre, pela sua popa. Se remasse para este, teria de dar com ele, pelo menos aproximava-se e ouviria o sino. Provavelmente havia mais pescadores perdidos no nevoeiro. Ou só estariam eles fora? E o Raposo que estava morto, que lhe iam fazer? Continuou a remar lentamente, levando a reboque o outro doris.
Lembrou-se do búzio que tinha na caixa sob o banco, parou de remar, remexeu as tralhas, levou o búzio à boca e soprou com toda a força. O som cavo da concha ecoou no silêncio branco que o rodeava. Esperou a resposta em vão, tornou a tocar o búzio, esperou, tocou, repetiu durante muito tempo este ritual. De vez em quando olhava para o Raposo que repousava encostado ao banco com a cabeça inclinada de lado.
Tinha perdido a conta às horas, tinha sede, bebeu dois goles da garrafa da água, não conseguia comer nada, parecia que tinha a garganta apertada. O Chico pensava na desgraça do Raposo, um homem que vendia saúde e que caiu sem dar um ai. E se o lugre não os encontrasse, que seria feito dele? Para já o frio suportava-se, mas o dia já estava a cair e durante a noite devia ficar tudo gelado. Seria ele capaz de aguentar?
Tirou as luvas, enrolou com dificuldade um cigarro, acendeu-o e soprou o fumo para o ar, vendo-o misturar-se com o nevoeiro que passava.

(continua)
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Sandra Fonseca
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« Responder #1 em: Março 06, 2008, 17:31:39 »

A narrativa me prendeu do início ao fim. Riqueza de detalhes e leveza nas descrições.
Adorei!
Um abraço.
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Mel de Carvalho
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« Responder #2 em: Março 07, 2008, 08:56:10 »

Caro Brito,
li esta 2ª parte na "concorrência". Mais uma vez lhe digo que sou fã incondicional do que escreve. Limpo, organizado, rico no detalhe sem contudo perder a expressão romântica e poética da vida.

"A ligeira névoa matinal mantinha-se, o mar estava raso, quase estanhado, salpicado de pequenos doris em redor do “Senhora da Ajuda†"

Deixo-lhe aqui um desafio, Brito: a poesia. Não nos quer dar o prazer de o ler noutro registo?

Um abraço
Mel
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Mel de Carvalho
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Vera Silva
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« Responder #3 em: Março 07, 2008, 10:53:21 »

Dá vontade de ler mais e mais! Excelente texto, bem escrito/descrito, muito rico, organizado e de fácil leitura.

Beijo

Vera
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Vera Sousa Silva
Goreti Dias
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« Responder #4 em: Março 07, 2008, 12:54:40 »

A vida no mar contada num nível de escrita muito bom! Espero que a continuação não se faça esperar muito!
Um abraço
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Goretidias

 Todos os textos registados no IGAC sob o número: 358/2009 e 4659/2010
britoribeiro
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« Responder #5 em: Março 07, 2008, 13:48:28 »

Vida dura a de pescador do bacalhau nos meados do seculo XX. Este pequeno conto, embora sendo ficção, pretende retratar situações bem reais que me são transmitidas por antigos pescadores dessa época.

Abraço
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Antonio
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« Responder #6 em: Março 07, 2008, 14:02:27 »

Mas a saga continua...
Ora vamos lá ler o resto!

Abraço
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britoribeiro
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« Responder #7 em: Março 12, 2008, 18:38:33 »

É verdade, uma verdadeira epopeia!

Abraço
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Bom domingo para todos.
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