Vitor da rocha
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« em: Junho 20, 2010, 01:24:49 » |
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O ANJO E A PUTA
2º
De sábado para domingo é o arraial maior, que na manhã seguinte as bestas ficam nas lojas, em pousio, e a missa é só à s onze. A manhã acorda ao som da banda, em alegre melodia e marcha afinada, os músicos de farda azul de funcionário público, cinco ou seis ainda catraios, com os cueiros agarrados aos instrumentos, a destoar pela altura de gâmbias curtas. Percorrem a povoação e atrás vai engrossando o mar de curiosos, por simples gosto de ouvir o chilrear da orquestra e alguns a remoerem secreta inveja de não saberem tal arte. Maria Grila viveu o dia de sábado a esvoaçar sobre as tendas, fitas e ruas, a imaginar o paradeiro do Pires Chalaça, onde estará agora, nos copos com os amigos, Deus queira que não, na bazófia com outras, mato-o se assim for, ai as horas que nunca mais passam, o baile que não chega, atrás da avó, em visita a amigas mais Ãntimas, que lhes oferecem bolos e vinho fino, ou então salpicão e presunto, coma tia Ana, não me faça essa desfeita, levo a mal se não provar um bocadinho, come também tu, ó Maria, então uma moça nova e sem apetite, deixa-te de vergonhas, que isso só quando se fazem desavergonhices, anda lá, olha que uma vez não são vezes, não engordas, os rapazes não fogem, que de moça tão guapa não querem fugir, tomaram eles mas é pegar-te e olha que não pensam noutra coisa, os desalmados. Maria Grila ruboresce e depenica aqui, trinca acolá, sempre pequenos mordos, que o apetite de boca não é nenhum, ai outro apetite, isso sim. Botou o melhor vestido, a passar o joelho, azul-celeste, folhos brancos, meio rodado, e na face duas bolas vermelhas pintadas de expectativa, nos pés uns sapatos novos comprados na feira e há uns meses guardados para a festa. E chegou a noite. Duas bandas, a da casa e a outra do Felgar, envolveram-se em desafio, com os ouvintes a virarem-se ora para uma, ora para outra, conforme a que flautava. Mais atentos e extasiados, alguns mesmo com cara de basbaques, a boca aberta, estavam os mais velhos, as patroas ao lado, roliças, peitos indolentes e graúdos, tom de corvos, lenços a suarem os cabelos que nunca viram a tesoura. Atrás dos progenitores, especadas, as filhas, rolas carnudas de pele de cereja, olhares fugitivos para os cantos da praça, onde, afastados, de plantão, dispostos em parada militar, os garnizés esperam. Por volta das onze, baixam os braços os músicos de farda azul, de lÃngua seca, a precisarem de molhar a garganta. É então que três jeitosos do acordeão sobem para o coreto e expulsam pautas e acordes, elevando para o negro da noite viras e marchas, valsas e corridinhos. Um atrás de outro, o Pires Chalaça o primeiro, afoito, destemido e batido nestas andanças, os garnizés espalham-se pelos chefes de famÃlia a pedir licença para dançar com a filha. E assim a tia Ana, nas vezes de pai e mãe, a contragosto, com a beiça revirada, não teve forças para mandar cavar o Chalaça e assentiu com discreto aceno de cabeça para a Maria. Os homens vão então para a taberna dessedentarem-se e entontecerem-se, restando as mulheres. E todos sabem o que acontece num bando de mulheres sem macho por perto – algazarra certa! E quanto mais as palavras fluem e as inebriam, como vinho maduro, mais a vigilância sobre as rebentas afrouxa, altura que o Pires Chalaça, mais tarimbado em festas que médico em achaques de senhora fina, aproveita para desviar Maria Grila do ramo de laranjeira, detrás do muro do adro da igreja, com a sombra da torre dos sinos a enegrecer mais o escuro da noite e do seu acto. Nem tugiu nem mugiu a rapariga quando sentiu o corpo a romper-se, e do gosto de tal pecado, entrevisto nas conversas, proibições e condenações, nem o cheiro sentiu. Melhores foram sem dúvida os preparos, com abraços, encostos e apalpões no traseiro e no meio das pernas, a lÃngua do Pires a sugar-lhe saliva e lÃngua, e uma doce e tremenda vontade de se derreter como gelo ao sol. E nessa noite perdeu o pólen e lhe nasceram as pétalas. A avó nem deu por ela quando se lhe chegou, sorrateira e culpada, pelas costas, no preciso momento em que acabava o corridinho e ela parecia ter vindo da dança, vamos embora, avó, que se faz tarde, e com tal espantou a velha, desconfiando de pressa tão estranha, quando as outras moças nem arredavam pé. No domingo, nem cheiro do Pires. Às cinco da tarde, juntou-se o povo na praça à espera da saÃda dos andores, com o S. Sebastião no comando das tropas. Pires, nada. Pelas ruas enfeitadas com arco-Ãris de fitas segue a chusma de gente, atrás da banda, que vai atrás do abade, sob o pálio, que vai atrás dos santos, que vão atrás dos pendões. Ao lado da avó, no meio do magote, Maria caminha e procura com os olhos o casaco, o cabelo, o chapéu, os ombros, o ar do prometido que não prometeu nem cumpriu. Só a meio da semana o irá ver de fugida e, perdido o orgulho, dirigiu-se-lhe, sem receios da boca boateira do povo, a pedir justificações para ausência sem sentido, furando-lhe o ouvido e o juÃzo com resposta sem contar, que teve tratos a que não pôde faltar, umas leiras para lavrar, malhada para desbagoar, feijão para ensacar, longe, longe, fora do alcance do povoado, e Maria deu-lhe de costas e desandou ágil e trémula, as pernas a chocalharem uma na outra como castanholas em mão de sevilhana. Até hoje. Dela disse sempre a avó, tesa como uma rocha, de antes quebrar que torcer, nem que lhe apontem o cano duma mauser ela dá parte de fraca. Do rabachola foi sabendo por mão alheia, vozes de almocreve, das estúrdias em que se envolveu. Até que, passado o marco dos trinta, arranjou uma pêssega prós lados de Lagoaça e por lá se arrimou. Deus lhe dê tanto e a mim nada me tire, matutava sempre que o sentido lhe fugia prà figura do falsário. Como telegrama de guerra, chegaram os enjoos, semanas depois da queda, e a secura do rio vermelho mensal. Preparou-se, apesar de aguardar ainda para ver para que lado se inclinava o seu corpo. Ao segundo mês não teve dúvidas. O gabiru tinha deitado semente à terra. Encilhou-se o mais que pôde, mas, por alturas do ano novo, a inchação crescia a olhos vistos, que até um cego notava a marosca. Uma manhã, com o nevoeiro a mijar os telhados e os cabelos, depois de aprontar as migas de alho para as duas e de levar a caldeira de vianda prà s barbas da besta, encheu o peito de ar, limpou as mãos ao avental, ajeitou o lenço no cume e sentou-se resoluta ao lado da avó, amarrada à lareira com a malga nas mãos. Avó, ouça-me sem tugir, e por alma de Nossa Senhora não me condene ao inferno, pois mais que eu a mim mesma não o pode fazer, tenha dó desta miserável, que se lhe enreda aos pés e lhe lambe a palma para se fazer perdoar. Que foi, rapariga?, matas-me de aflição com essa cara de enterro. Então despejou tudo, como a diarreia para um bacio, as mentiras e falsidades que lhe pregara, a ela, que a tinha criado como mãe devota, e por fim a traição do farsola. Bata-me, rebente-me as costelas com o pau de varejar as oliveiras que tudo é pouco para corpo de tanta desgrácia. Atirou-se aos pés da velha, metidos em chancas mais encardidas que cara de limpa-chaminés, e desatou aos beijos e ais, saliva e lágrimas embrulhadas como par de apaixonados. Mas a avó tinha o coração maior que uma arca, ainda arranjando fôlego de gato para ver a careta do bisneto e nela descobrir vestÃgios de sua mãe e de outros avoengos, o mesmo cabelo claro e queixo aguçado, e o modo de abrir um sorriso. Os saltos que o.sangue dá por cima das gerações, macho de má andadura, hoje manso como uma burra e amanhã mais bravio que touro enraivecido a escaqueirar quando madeirame se lhe atravesse no caminho. A avó acabou por largar o mundo tinha o menino dois anitos, ficando a Maria mais só e pobre que desertor fugitivo, a roupa no corpo e nada mais.
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