O meu Natal de 50

O meu Natal de 50

Por entre o ruído e a azáfama que invadia a minha rua naqueles anos pós guerra, de vez em quando ouvia-se o rufar dos tambores que anunciavam a chegada da troupe, que instalava num repente o teatro de fantoches a que nós chamávamos Robertos.
Em tropel, a miudagem do prédio descia as escadas em busca do melhor lugar para assistir às tremendas cacetadas com que o diabo era brindado e que faziam rir crianças e adultos até mais não poder. A velha saga entre os bons e os maus, inspirava o diálogo que os dois actores protagonizavam, como vindas dos “Robertos”. Um, o vingador, armado dum varapau. O outro, um coitadinho, vigarizado pelo mafarrico que com a cabeça pintada de vermelho, onde eram notórias as mazelas de tanta bordoada, era o bombo da festa! O pano de riscado que formava o pequeníssimo recinto quadrado ia ondulando numa agitação crescente, à medida que a acção se desenrolava. De lá de dentro provinham as vozes soando a falsete, que constituíam os pobres diálogos da acção. Cá fora um velho rafeiro branco e preto de olhar triste, que fazia companhia a uma pequena caixa de cartão onde se iam amontoando algumas moedas, completava o quadro.
Em dez minutos tudo acabava e o pequeno grupo de transeuntes dispersava. Os miúdos, antes de regressar a casa, aproveitavam a ocasião para trocar os repetidos da colecção de jogadores e mostrar os últimos dinky toys. Estes pequenos automóveis, nascidos vinte anos antes e réplicas perfeitas dos verdadeiros, custavam uma fortuna que o meu mealheiro de barro não comportava. O meu patamar de ambições, deslizava para os carrinhos de plástico amarelos com rodas pretas que o João, um miúdo pouco mais velho que eu, apregoava, rua abaixo e que custavam cinco croas. Os dezasseis tostões que lucrara no presépio sanjoanino após a compra do camelo do Rei Mago eram insuficientes para comprar o carrinho amarelo de rodas pretas, que povoava os meus sonhos.
Apesar das sucessivas abordagens, mendigando mais uns tostões aos meus avós e restante família, o objectivo que ocupava inteiramente a minha mente de miúdo de 6 anos, nunca passou dum sonho inalcançável.
Os meses foram passando e as flores das sardinheiras que enfeitavam as varandas da minha rua foram murchando, anunciando o Inverno. Aos meus ouvidos, de quando em vez, chegavam os ecos do pregão do João que continuava a vender os carrinhos amarelos com rodas pretas. Eram tão pequenos que mal os distinguia do alto da varanda do terceiro andar.
Aquele Natal de 50 finalmente chegara e com ele a árvore de Natal, onde pedaços de algodão imitavam a neve, no meio das bolas de vidro coloridas. Na cozinha a azáfama convertia-se em doces e rabanadas com que me lambuzava.

Como em todos os Natais, no fim da ceia, o meu pai, disfarçadamente puxava o cordel que fazia soar uma sineta na cozinha. Nessa noite, num misto de receio e curiosidade aproximei-me do fogão e de olhos arregalados contemplei por entre os papéis coloridos e laçarotes que cobriam o velho fogão a lenha, um pequeno embrulho, que mal cabia no meu sapatinho e que freneticamente desembrulhei. Lá estava ele, novo e brilhante, na sua garagem de celofane.

O pequeno Bugatti da dinky toys que repousa ao lado do meu computador enquanto alinhavo estas linhas e que me acompanhou nesta viagem pela vida, ora na sacola da escola, ora no bolso da farda camuflada pelas savanas de África, e que viu crescer as minhas filhas, materializou o sonho duma criança naquele Natal de 50.

Ah....e o carrinho amarelo de rodas pretas? Quando finalmente juntei os vinte e cinco tostões, o João desaparecera da minha rua, mas o carrinho amarelo de rodas pretas, esse, ... ainda povoa os meus sonhos!

Leça da Palmeira, Dezº de 2010
Tom