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Autor Tópico: Cabo Blanco  (Lida 3215 vezes)
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britoribeiro
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« em: Março 13, 2014, 10:26:35 »

13 Julho 1936 - Não se via um palmo à frente do nariz, a névoa pegajosa e húmida tudo tolhia. O som repetitivo da máquina, adensava a sensação de isolamento criado pelo nevoeiro. O dia ainda vinha longe, já o Comandante Piño desesperava com o compasso e régua sobre a carta de navegação. Não perdia de vista a agulha de marear e na ponte vários pares de olhos esforçavam-se a escrutinar as trevas nevoentas. À volta do “Cabo Blanco†o mar tinha adormecido e cardumes de sardinha fugiam para o profundo ao sentirem a vibração daquele corpo estranho em movimento.
A viagem tinha-se iniciado em Huelva, às portas do Mediterrâneo, com uma carga de produtos da terra, vinho, azeite, amêndoa, figo entre outras iguarias de que os Galegos de Vigo estavam escassos, destino desta cabotagem. Na Andaluzia corriam rumores sobre a eminência de um golpe dos monárquicos, há até quem diga que o General Queipo de Llano já dera as suas ordens. Talvez a carga de mantimentos do “Cabo Blanco†fizesse parte do plano de reforçar o abastecimento da Falange na Galiza, disso saberiam os armadores, não o comandante e muito menos os marinheiros, que estão ali para labutar.
Dois dias de mares remansosos, sem vento, nem ondulação, que fazem feliz qualquer marinheiro. Poupa-se no carvão e avia-se a empreitada a contento do cliente. Madrugada dentro, tinham avistado os clarões do farol de Esposende, passando a distância segura dos mal-afamados “Cavalos de Fãoâ€, dentes rochosos sempre à espreita de incautos, destino amaldiçoado por viúvas e órfãos. Nor-noroeste, sentenciou o Comandante Piño, bom conhecedor daquelas voltas, enquanto o piloto rodava o leme a bombordo.
A máquina resfolegava pela pressão do vapor que impulsionava as enormes bielas de metal polido, peganhenta de óleo que os maquinistas lhe vertiam.
O dia levantara-se cedo e triste, a bordo despertavam corpos e consciências toldadas pelo palhete andaluz que correra farto ao serão. O Comandante olhou pela milésima vez para a bússola incrustada na campânula de latão polido. A cada minuto, o silvo estridente da sirene fendia a cúpula de algodão que lhes servia de céu. Por mais atentos e avisados que estivessem os dois marinheiros de atalaia nas asas da ponte, nada assinalavam ao angustiado oficial, homem sabedor, porém nervoso com tanta responsabilidade.
No seu cubículo, o radiotelegrafista, de auscultadores nos ouvidos, perscrutava o éter, ora partilhando a apreensão de outros navios presos no nevoeiro, ora acompanhando as informações das estações navais. À sua frente, a caneca de café, lembrava-lhe uma noite de espertina.
Entre dois silvos da sirene ouviu-se um ligeiro rocegar, como alguém que esgadunha ao longe. O silêncio regressou, apenas o tempo suficiente para todos se perguntarem sobre a origem de tão estranho ruído. O ribombar seguinte tirou-os de dúvidas e à vibração habitual provocada pela máquina, sobrepôs-se o tremor da estrutura metálica em luta contra a áspera penedia.
Após os primeiros momentos de estupor, correrias cruzaram o convés, semblantes de pânico, gentes aflitas emergentes do ventre metálico rasgado. A máquina deu à ré, demasiado tarde para esta manobra. Do pouco que se podia vislumbrar, percebia-se que tinham entrado por um afloramento rochoso, talvez a norte de Viana da Foz do Lima, agora conhecida pelo Castelo que lhe guarda o casario.
O pedido de socorro foi enviado sem demora e das estações costeiras de Lisboa e de Leixões foi acusada a recepção e prometido auxílio. Vários navios que se encontravam próximos responderam ao chamamento e pelo meio da manhã, quando o nevoeiro se retirou e o sol brilhou, com a posição obtida pelo sextante do Comandante Piño, reconheceram na velha e sebosa carta náutica, a costa de Montedor, onde se destacava a torre quadrada do farol agora apagado. A colina verdejante cortada verticalmente pelo mar observava-os sobranceira e os moinhos rodavam as pás preguiçosas. Na planície, camponeses sachavam o milho que lhes fornecia pão e alimentava o gado nos rigores do inverno.
Os sete passageiros desembarcaram a salvo pelo cabo lançado a terra e a maior parte da tripulação retirou-se do navio, que abrira água nos porões da proa. Para a operação de desencalhe, iniciada nessa tarde, bastava a presença dos maquinistas e de mais alguns marinheiros para a manobra do reboque. Trabalho inglório, que nem o mar estanhado resolveu. Dos buracos do casco saiam, ao sabor da corrente, os barris de vinho e azeite da Andaluzia, que mãos ávidas, a bordo das masseiras da Praia de Âncora e dos pesqueiros de Viana, retiravam das águas, antes que se escapassem para a praia, onde a chusma de camponeses se metia à rebentação para resgatar tanta fartura.
Não tardou a Guarda-fiscal querer arrecadar o que o mar dava e o engenho do povo subtraía.
Negócios faziam-se entre pedras e dunas, barris e caixas eram carregados, o dinheiro mudava de mãos sumindo-se logo nos bolsos negros, enquanto o “Cabo Blanco“ afundava lentamente a popa inundada. “Dali já não saiâ€, diz quem conhece bem os picos fortes e aguçados das rochas do Montedor, “com a graça de Deus, não morreu ninguém†responde-lhe quem está habituado às tragédias que o mar provoca.

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Dionísio Dinis
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« Responder #1 em: Março 14, 2014, 20:46:21 »

Em escrita prenhe de interesse e qualidade se exemplica de como se conta uma história e se lhe acrescenta a arte e o engenho.Os meus aplausos!
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Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
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Maria del Mar
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« Responder #2 em: Março 14, 2014, 20:50:08 »

Em acidentes de mar, é uma sorte não morrer ninguém. Neste caso também. Gostei da sua escrita.
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Goreti Dias
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« Responder #3 em: Março 14, 2014, 20:57:57 »

Um recuar no tempo escrito de forma exemplar. Como, aliás, já é habitual.
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Goretidias

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« Responder #4 em: Março 15, 2014, 00:11:39 »

Uma história bem contada. Gostei.
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #5 em: Março 16, 2014, 18:07:56 »

Fez-me estar lá...

Obrigada por esta "viagem"


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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boa noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Bom domingo para todos.
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