Nação Valente
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outono
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« em: Novembro 10, 2017, 21:17:46 » |
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A minha famÃlia, como a maioria, nasceu pobre e pobre viveu. Os meus pais, não tinham em abundância pão na despensa, ou carne na salgadeira, mas quando se apagava o candeeiro a petróleo, e começava a fria noite de inverno ou a quente noite de verão, aquele tálamo conjugal era uma festa pegada. Festa sem custos monetários e sem pagamento de impostos. Ali, era comer até encher a barriga, Embora só a da mãe é que crescesse. O diabo, era que passados nove meses, saÃa da sua barriga mais uma boca a pedir comida. Quando eu vi a luz deste mundo já tinham chegado oito almas. Quanto a filharada, aquela casa portuguesa, era mesmo uma casa rica. Como a prole não parava de crescer, e crescia no sentido inverso da produção de recursos, por mais que o pai se esfalfasse a trabalhar, as moças cedo partiam em procura de comida mais farta. Umas como criadas de servir, outras, juntando os trapinhos com quem lhe garantisse o sustento. Lembro-me de uma Maria que se deixou iludir por um maltês, que fazia parte da trupe do alcatroamento da estrada. Uma noite, saiu discreta, arrastando os tamancos e a mãe comentou " a nossa filha vai com um qualquerâ€. Só sei que deixou um cheiro a estrada acabada de alcatroar". . O meu pai, tirou uma fumaça do cigarro de onça, que tinha acabado de enrolar e disse: -deixa-a ir mulher pela estrada que escolheu percorrer. Prá gente sempre é menos uma boca à mesa. E estava certo. Desde esse longÃnquo dia, em que essa maria saiu sem se despedir, com o tipo que cheirava a alcatrão fresco, nunca mais se soube do seu paradeiro. Mas não vi grande tristeza com a sua partida, até porque pelo volume da barriga da mãe, vinha mais uma alma a caminho, para ocupar o seu lugar. Eu próprio, um criado à s vossas ordens, tive de fazer a trouxa e fazer-me a esse mundo de Deus. Não tinha mais que onze anos quando parti para a capital. Nesse dia, não imaginava, nem em sonhos, que seria o próximo a abalar. Estava confortável com a vida que tinha. Guardava um pequeno rebanho, e na quietude bucólica dos montes, enquanto os animais pastavam, falava com gente de outras paragens que vivia enclausurada em páginas de livros. Eram pessoas que se manifestavam em letras de forma, e que me acompanhavam na solidão dos longos dias. Todas as semanas, os livros chegavam ao largo principal, numa carrinha que se chamava biblioteca Gulbenkian. Sai daà malhadinha Nesse dia, depois de recolher o gado, estava eu embrenhado nas peripécias das "Pupilas do Senhor Reitor", a minha mãe interrompeu-me para me levar a visitar um senhor de bom traje e finos modos, que nunca tinha visto -O senhor Francisco, que vive há muitos anos na capital, e que está de passagem, quer conhecer-te†disse a minha mãe. O senhor Francisco foi o primeiro homem que conheci que falava com frases de fino recorte, iguais aquelas que eu pensava que só era permitido aos habitantes dos livros. -Tu não me conheces, disse o senhor Francisco, porque quando saà desta aldeia, ainda vivias no limbo da existência. Perdi o medo que nos tranca a vida, nos portões de castelos de mediocridade. Comi o pão que o diabo amassou. Com perseverança e trabalho enfrentei o destino, que me colocou nesta terra onde nem Judas quer viver, mas venci. Hoje comando uma secção de uma grande indústria, mas não esqueço as minhas origens, e quero ajudar os meus conterrâneos que querem ter futuro. Esforcei-me por seguir o raciocÃnio, mas perdi-me por entre o labirinto de estranhas palavras. Mais tarde percebi, que o senhor Francisco falava mais para si do que para mim, ou para a minha mãe. Quando terminou este discurso olhou-me nos olhos e perguntou: -Ó rapaz tu queres ir para Lisboa? -Tenho um amigo de infância que é dono de uma mercearia, e precisa de um marçano para fazer entregas aos clientes. Cama, comida e roupa lavada e a vida toda à tua frente. E a minha mãe “vai Zé que aqui não passarás da cepa torta†Fui com o senhor Francisco, que me entregou ao dono da mercearia Flor da Estrela. O meu patrão, instalou-me num pequeno anexo da loja, com um divã de rede de arame, e uma pequena mesa. A minha formação foi simples e rápida: tinha de me levantar à s seis da manhã para ajudar o senhor José a transportar os frescos do mercado abastecedor. Às nove começava a distribuir mercadorias pedidas pelas “madamasâ€. Cabaz bem cheio em cima do lombo, escada acima, escada abaixo, todo o santo dia. -aà está o que pediu madame Lucrécia Às sete, depois de fechar a loja, fazia a limpeza, comia um jantar frugal, e lá para as nove, caÃa no divã como tordo entalado em esparrela. E quando me mostrava mais exausto, o senhor José, o patrão, dizia, “também já passei por isso e sobrevivi. Ainda hoje dou no duro porque não sou nenhum fidalgo. -Ó rapaz, onde tens a cabeça, pedi arroz e trazes sabão macaco? Na primeira carta que enviei à minha mãe, e que mantenho como recordação desses tempos de infância perdida, escrevi: Querida mãe, desejo que esta a vá encontrar de boa saúde, na companhia da restante famÃlia. Eu fico bem graças a Deus (esta do fico bem, é aquilo a que se chama um lugar comum, a seguir desmentido) Estes primeiros dias têm sido muito ruins. Carrego cabazes pesados à s costas, com coisas para as senhoras finas. Ao fim do dia, quase que não sinto as pernas, só quero deitar-me e até chego a ter saudades da vida de moiral. A cidade é muito grande e sinto-me um estranho e um capacho de gente importante -Desculpe dona Lucrécia, vou reparar o engano E a minha mãe na resposta “ meu querido filho, nós bem graças a Deus (segue-se uma demorada descrição de cada um dos elementos da famÃlia) …se essa vida é tão dura volta para casa, ainda cá tens o teu prato e o teu garfo†e eu na resposta “querida mãe e querido pai…por cá trabalho que nem um moiro, mas voltar para o rebanho não vou voltar, custe o que custarâ€. E não voltei. Aguentei firme. Fiz quilómetros de escadas, gastei solas e meias solas, que os tempos eram de poupança. Anos depois subi na hierarquia. Cheguei a caixeiro. Comecei a estudar à noite. Não me via toda a vida atrás do balcão e nem me imaginava a acabar os meus dias como merceeiro. Aos domingos, ia vender bebidas para os jogos de futebol. Escrevi, então, à minha mãe, para a convidar a ir à venda do Zé Picoito à hora do relato, para me ouvir falar na rádio.. A minha mãe, que nunca mais me tinha posto os olhos em cima, disse à senhora Laurinha do posto dos correios, para lhe pôr na carta que tinha ido ouvir-me como combinado: “meu filho, os homens que escutavam o relato, começaram a gozar comigoâ€. -olha a laranjada fresquinha -eu disse-lhes “ venho ouvir o meu Zé†e eles “o seu Zé vai falar na rádio?†Ah ah ah -atenção Amadeu, atenção Amadeu, E eu ouvi-te e conheci a tua voz e eles “pois ouviu- apregoar as bebidas, sabe lá se é o seu filho, um entre muitos?†-olha a gasosa fresca. -Eu sei que é o meu filho, conheci-lhe a voz, disse ofendida. Labregos, invejosos, mortos de fome é o que são. -diz Artur “ penalty a favor do Sporting†Outras cartas foram e outras vieram. Outros pregões se gritaram nos campos de futebol. E a adolescência chegou. Comecei a ver as “madamas†com outros olhos. Reparei em pormenores que antes me escapavam. A dona Regina na sua camisa de dormir transparente, a dona Aninhas, mulher do senhor deputado da Assembleia Nacional, de grandes olhos negros, e seios a querer saltar pelo decote ousado, que tinha um tratamento especial. “Olha que o senhor deputado é tu cá, tu lá com o doutor Salazar que Deus o proteja, porque nos livrou da guerra e do comunismo†dizia o patrão. Estas e outras alumiavam-me a existência nas noites solitárias. Com todo o respeito. Pecado apenas em pensamento. Um dia, quando for grande e tiver um trabalho seguro, hei-de voltar à aldeia para procurar moça casadoira. Bem me adverte aminha mãe: -Não te metas com essas moças da cidade. As nossas raparigas são mais simples e sérias. A tua prima Maria do Carmo está sempre a perguntar por ti. Hoje vivo como um citadino na cidade que me adoptou, mas na solidão do meu quarto sinto que dentro de mim viverá sempre o guardador de rebanho que lia romances. E vem-me muitas vezes à memória, a aventura do Jacinto, de “A cidade e as Serras†que fez um percurso inverso ao meu, para usufruir da simplicidade da natureza na sua casa de Tormes.
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