[Tez lilás]

Aquietam-se as águas onde submergiu o homem de tez lilás. O seu cabelo alvo trazia todo um mar por onde navegaram, em tempos, navios de sonho e de fantasmas.

Tic tac

Da alma apenas se ouviu falar. Num lampejo de sorte saltou no último instante antes da tágide lhe fazer a derradeira incursão pelas entranhas. Soou a trovão e a raio quente de sol o salto para o desconhecido.

Tic tac

Dizem que viveu por entre gatos e pássaros. Que todas as manhãs descia ao jardim que virava a esquina de sua casa tropeçando por entre gaiolas e felinos mimados, numa irmandade inigualável. Assim se sentava, num dos muitos bancos verdes, com a amizade pousada nos joelhos, nos braços, nos ombros e na nuca. Quem por ele passava ora sorria ora chorava. Ele, alheio aos transeuntes, não dava por nada. Mantinha-se absorto num inquietante diálogo com quem sempre o soubera ouvir. Conheciam-lhe todos os nós do estômago,todos os amargos de boca e todas as dores de alma.

Tic tac

Numa manhã, que não era uma qualquer dado ser a primeira a trazer os aromas do pólen que agora de desprendia dos estames, lançaram-lhe uma moeda aos pés. O impulso de uma qualquer alma que, achando conhecer o profundo sentido da caridade, pagou as palavras e o tempo que não quis dispensar. O homem de cabelo alvo e tez lilás, de periquito verde com laivos azuis na ponta do dedo indicador, deixou-se ficar durante alguns instantes absorto no movimento giratório e concêntrico que a moeda descrevia antes de ser consumida, definitivamente, por uma força gravítica que a atrairia em segundos para a inércia do negro do alcatrão. Levantou então os olhos e viu uma mulher, tão velha quanto ele era velho, afastar-se lentamente. Prontamente desviou a gataria, encavalitou as gaiolas com todo o cuidado e, envolto por uma energia que já não sabia em si, correu atrás dela de sorriso arreganhado.

-Senhora, senhora....deixou cair esta moeda ao chão-

Os dentes que já não tinha luziam-lhe ao sol matinal enquanto, de mão esticada com a moeda pousada na palma, esperava o sorriso e o agradecimento que nunca chegaram.

-Seu louco! Devia estar internado. Faz uma pessoa bem a esta gente e ainda nos ameaçam e troçam em plena luz do dia. Está o mundo perdido.

De tez lilás deixou-se ficar, muito quieto, vendo o espectro de gente afastar-se,agora apressadamente.

Tic tac

Meteu então a moeda do seu infortúnio ao bolso e regressou ao banco verde do jardim que virava a esquina de sua casa. Em silêncio, com gestos lentos como se de um ritual se tratasse, abriu as portas das gaiolas dos pássaros só para sorrir ao vê-los partir. Soltou as trelas aos gatos só para chorar ao vê-los ficar ,

....e partiu.

Tic tac

Sim. Quem viu diz que a ninfa o abraçou num amor profundo consumindo-lhe as entranhas até ao último reduto. Apenas a alma se escapou, saltando num último instante.
Aquietam-se agora as águas onde submergiu o homem de tez lilás e cabelo alvo de espuma onde, em tempos, navegaram navios de sonhos sem que algum dia tenha saído do mesmo lugar.

[tic tac, miau, piu-piu]