A rapariga do autocarro.

[Tim_booth]

Não conseguia desviar o olhar dela. Era óbvio para todos os outros passageiros do autocarro que pousassem os olhos nele por mais do que um segundo. Ela já se tinha apercebido também, mas fingia que não tinha reparado.

Ele questionava-se quem seria aquela cara recorrente que todos os dias já vinha no autocarro das 8h45 quando ele apanhava e que saía duas paragens antes da dele. A princípio não tinha reparado nela, mas algumas semanas depois, uma cara destacava-se das outras duas ou três que via practicamente todos os dias àquela altura. Não pela sua beleza inegável. Não pela sua voz, que em raras ocasiões tivera a oportunidade de ouvir. Na verdade não sabia bem porquê. E se calhar era isso que o deixava mais empolgado com a sua companheira de viagem.

Ela já sabia que ele a observava há bastante tempo. Achava piada. Ele não parecia propriamente alguem que lhe pudesse fazer mal, por isso não tinha medo nem se sentia incomodada. De certa maneira, também ele tinha um certo interesse. Ela reparava que, às vezes, ele olhava para os outros passageiros com um olhar intrigado, apesar de aos olhos dela serem pessoas completamente normais, e podia jurar que via no reflexo dos olhos dele as histórias que provavelmente estava a imaginar.

Ultimamente ele sentia-se tentado a falar com ela. Não perdia nada. A não ser, é claro, que assim que encetassem uma conversa ela perdesse toda a magia para ele e caísse do pedestal onde estava tão cuidadosamente instalada. E ele não queria isso. Gostava de passar o dia a pensar na rapariga do autocarro, a imaginar histórias sobre ela, a construir-lhe uma vida.

Certo dia de sol e calor, um daqueles em que ele não conseguia impedir que o seu olhar se desviasse por breves instantes para o ligeiro decote dela, ao sair do autocarro, quase que deixava o seu queixo cair quando sentiu o piscar de olho que ela lhe lançou. Refez-se do choque ainda a tempo de esboçar o sorriso que já foi capaz de derreter tantas raparigas. Ela corou levemente e seguiu o seu caminho.

Durante algumas semanas aquele ritual continuou. Por vezes era ela que lhe piscava o olho ao sair, por outras era ele quem lhe lançava o caloroso sorriso quando ela se levantava. E a cada dia que isto acontecia a mente dele voava e criava cada vez mais histórias à volta dela. Era como se se conhecessem toda a vida. Ele imaginava tanto que agora sabia tudo sobre ela.

Um dia, quase na paragem em que saía, ela decidiu dar seguimento aquele flirt que já levava meses. Disse:

- Sónia. O meu nome é Sónia.

Ele riu-se ligeiramente, olhando para baixo como quem se sente surpreendido por si próprio. Levantou então o olhar, naquele estilo à George Clooney, sorriu o mesmo sorriso que lhe oferecia todos os dias e respondeu:

- Eu sei.

[Alice Duarte]

Meses, Tim, meses? Ah, gosto desse namoro à moda antiga! Uma forma de prolongar a expectativa pelo menos... 

Gostei muito de ler o teu conto. Tens claramente a vocação da escrita.

Abraço

[britoribeiro]

Acho que isso acontece com todos os que utilizam transportes públicos. Conhecer pessoas que fazem os mesmos trajectos durante meses ou anos e nunca trocarem uma palavra ou partilharem uma conversa.

Abraço

[Vóny Ferreira]

Segui a narrativa do seu conto
com redobrado interesse, e fiquei
impressionada com a forma clara
e interessante como fala do quotidiano.
Os meus parabéns!
Vóny Ferreira

[Goreti Dias]

Um interesse crescente, um amor nascente... sei lá...
Um conto de linguagem viva, um ritmo de narração adequado. Gostei!

[Tim_booth]

Obrigado a todos pelos comentários.

Quando todos os dias andava de transportes públicos esta era uma daquelas coisas que queria que me acontecesse, encontrar alguém com quem partilhar o caminho num flirt descomprometido e ligeiro, ou, pelo menos, uma pessoa interessante com quem conversar.

Cheers

[Laura]

E como é que ele sabia o nome dela, tim-booth?

[Tim_booth]

Durante tantos meses no autocarro, o rapaz imaginou-lhe uma história: o trabalho, a vida até então, os amigos, o que gostava de fazer, e, também, o nome. Ele acertou no nome verdadeiro para demonstrar a capacidade dele de observar bem dentro dos olhos dele.

[Mel de Carvalho]

Gosto sinceramente de o ler. Gosto da forma como organiza a sua escrita, como "questiona" a realidade e desenha o sonho.

Fraterno abraço
Mel

[Laura]

Fantástico, tim!

[Tim_booth]

Muitíssimo obrigado Mel, escrever é aquilo que eu gosto realmente melhora muito quando sabemos que gostam daquilo que se escreve.

Cheers

[Mel de Carvalho]

Olhe, Tim, ando numa de contar mil coisas... pois bem, durante "mil anos" guardei tudo o que escrevia, secretamente. tinha literalmente vergonha. (pode rir). um dia, numa máquina de triturar papel, triturei 2 anos de escrita. apaguei tudo no computador.
depois voltei... abri blogs (a forma de tomar conta de mim, ou seja, obrigar-me a não fugir...). dai até aqui, o caminho nem sempre foi fácil, mas sobrevivi, em especial porque encontrei gente que me incentivou a continuar. a quem sou imensamente grata. é bom saber que nos lêem, sim.

Siga em frente. "O caminho faz-se caminhando".

[Tim_booth]

Já que está numa de contar Mel, eu acompanho-a...

Não sei se já deu para perceber mas sou rapaz novo ainda. Durante cinco anos a informática foi a minha vida. Três no ensino secundário mais dois no superior. Durante os últimos dois, acrescentei ao curso superior o trabalho como programador informático. Até ao dia em que disse para mim, Não vou conseguir ser feliz se fizer isto o resto da minha vida. Nesse dia resolvi deixar o curso de Informática e voltar-me para a minha paixão de sempre, a escrita. Candidatei-me ao curso de Línguas e Literaturas (aguardo notícias em Setembro), dediquei mais tempo para ler e escrever e sinto-me muito melhor. É como diz Mel, "O caminho faz-se caminhando" quando senti que o meu estava errado voltei atrás e tomei outro caminho na encruzilhada. Agora sei que estou num caminho que me vai levar bem mais feliz!

Cheers

[Tim_booth]

Muito obrigado Dite.

Mesmo que não tivesse, certamente arranjaria um espaço para mim neste mundo que gostasse

[Laura]

Já que está numa de contar Mel, eu acompanho-a...

Não sei se já deu para perceber mas sou rapaz novo ainda. Durante cinco anos a informática foi a minha vida. Três no ensino secundário mais dois no superior. Durante os últimos dois, acrescentei ao curso superior o trabalho como programador informático. Até ao dia em que disse para mim, Não vou conseguir ser feliz se fizer isto o resto da minha vida. Nesse dia resolvi deixar o curso de Informática e voltar-me para a minha paixão de sempre, a escrita. Candidatei-me ao curso de Línguas e Literaturas (aguardo notícias em Setembro), dediquei mais tempo para ler e escrever e sinto-me muito melhor. É como diz Mel, "O caminho faz-se caminhando" quando senti que o meu estava errado voltei atrás e tomei outro caminho na encruzilhada. Agora sei que estou num caminho que me vai levar bem mais feliz!

Não sou a Mel, mas dá para perceber, tim. Acredito com toda a força que devemos seguir o caminho que nos faz feliz... e quanto mais novos começarmos, melhor. Pode ser agreste, selvagem, difícil, pode levar-nos a tropeçar, cair... não interessa. Deixo aqui uma das minhas citações preferidas (e desculpem estar em inglês, mas não sei espanhol):

"A path is only a path, and there is no affront, to oneself or to others, in dropping it if that is what your heart tells you. Look at every path closely and deliberately. Try it as many times as you think necessary. Then ask yourself alone, one question: Does this path have a heart? If it does, the path is good, if it doesn't it is of no use."
Carlos Castañeda