MASSAGEM INVISÍVEL

[josé antonio]

Maria carregava as venturas e desventuras dos quase noventa anos de vida. Viúva desde muito nova com três filhos nos braços, quando o marido emigrado no Brasil, num acto de desespero, só entendido pelas más-línguas, subiu a um poste de alta tensão e lá ficou electrocutado. Carpinteiro de sucesso mas de poucos ganhos neste país, abalou mar fora para granjear o sustento da família e o pagamento do tecto que iniciara para todos.
Dos três filhos que votara ao mundo apenas um a considerava, respeitava e tratava como mãe, sempre mantendo a porta de sua casa aberta para ela. O mais velho, militar em Angola, por lá ficou e nunca mais se lembrou ter nascido dum ventre de mulher, sua mãe, ainda viva, chamada Maria. O mais novo, bem colocado na vida, ex-seminarista, com quem ela passara alguns anos de vida, alimentava-a com os restos das refeições e dispensara-lhe o quarto mais escuro e pequeno da casa para ela passar os últimos anos de vida, sem estorvar. E ela foi sobrevivendo até não aguentar mais os insultos e as agressões da nora ou do filho, pouco importa, depois de as ter sofrido.
Como pôde, reuniu os seus parcos haveres num saco de chita com ramagens, três saiotes quase desfeitos, dois aventais e uma meia dúzia de fotografias, do casamento e do jornal Globo aquando do suicídio do marido.
Às seis da manhã, duma Segunda-feira, estava à porta do filho do meio. Bateu à porta e esperou pela sobrevivência. Tinha a face bastante mal tratada e queixava-se das costas por causa de um tombo que dera nas escadas... provavelmente duma pancada mais forte por mal calculada. A porta abriu-se e ela entrou sem palavras porque o seu olhar de infortúnio e desespero tudo dizia. No mesmo dia foi improvisado um quarto no sótão numa azáfama digna de inclusão no Guiness Book.
Nessa noite já tinha comida, sossego e cama num quarto que lhe assegurava a privacidade possível através dum cortinado improvisado. E carinho.
Maria usava uns aventais com bolsos grandes aonde armazenava os bocados de pão, buchas indispensáveis para alimentação do ócio, bolachas e o frasco secreto aonde guardava a aguardente, o seu mais precioso antibiótico.
Tinha por hábito queixar-se da maleita das costas, ora por causa do frio, da humidade, do nevoeiro, da neblina, do sol, do vento, de tudo. E como remédio que sabia eficaz, nada melhor que uma boa "esfricção" com aguardente.
Então, para combater tanta dor, todas as noites antes de deitar, descia as escadas do sótão e pedia ao filho um " calinhos" de aguardente para " esfriccionar" as costas.
E ele bom homem e bom filho, enchia-lhe o frasco para  a "esfricção". Decorrido um mês, olhando a garrafa quase vazia, sem lhe ter tocado para uso pessoal, decidiu cometer o crime da espionagem, para apurar o tipo de massagem que tanta aguardente gastava.
Apagadas as luzes da cozinha, do corredor e dos quartos, colocou-se no fundo das escadas para o sótão e esperou pelo deitar da mãe.
Foi então que Maria, depois das orações proferidas, meteu  o frasco da aguardente à boca e o despejou em meia dúzia de apetecidas goladas. Voltou a arrolhá-lo, soltou um enorme arroto e deitou-se em paz.

[Tim_booth]

Belo conto José António. Não há melhor "esfricção"!

Cheers

[Mel de Carvalho]

José António, já me ri. A Maria era da tempera da minha Balbina, com diferença de cor ... no caso esta era mais subtil.

Belo conto.

Abraço fraterno
Mel

[josé antonio]

Boa noite Mel e Tim,

Sinceramente, os meus personagens são personagens profissionais.
Também não sei o que isso é.
Abraço

[Goreti Dias]

Um poderoso antibiótico!
Gostei deste realismo num conto bem "esfriccionado".
Abraço

[josé antonio]

Boa tarde Laura,

Este seu comentário recordou-me uma máxima dum ex-colega e amigo que receitava a toda a gente constipada um uísque, porque : Se o micróbio não morrer pelo menos fica tonto e não te incomoda por algum tempo...

Abraço


Goreti,

Não existe o verbo ESFRICCIONAR?

[Nina Araujo]

Belo conto muito bem narrado. Triste, real e claramente me ficou entendido o quanto esta pobre e abandonada mulher derespeitada e idosa tinha para afogar suas magoas nesta "massagem".
O que parece somente um conto inusitado, traz uma forma que me faz gostar cada vez mais de ti, jose antonio, escritor sensivel e talentosamente treinado nas narraçoes de desventuras da vida, entre outras. Maravilha! Aplaudo!

[josé antonio]

Boa tarde Nina,

Agradeço o seu amável comentário fruto de uma sensibilidade apurada de interpretação. Mas não repita, porque se me acabam os lenços. Brinco...

Grande abraço

[jcbrito]

um conto bem esfriccionado, sem dúvida, zé antónio. continue a esfriccionar, continue...
abraço
jcBrito

[josé antonio]

João Carlos,

Já não podemos esfriccionar? Estamos na ditadura? Ein???

Abraço

[jcbrito]

pois... a dita_dura...

[josé antonio]

Boa tarde João Carlos

E fim do capítulo!

Abraço

[josé antonio]

Agradecido Dite pela leitura e interpretação.

Abraço

[vitor]

curtas mas belas as suas "esfricções" Antonio. Bela a sua escrita. Abraço
vitor burity da silva

[josé antonio]

Vitor,

Não me diga que também não esfricciona?

Tem direito a não responder...

Abraço