[Parte I aqui][Parte II aqui][Parte III aqui][Parte IV aqui][Parte V aqui][Parte VI aqui]Em abono do José, verdade seja dita que é coisa estranha ouvir uma voz desconhecida, vinda do nada, no interior dos mais interiores de um homem. Já seria normalmente estranho para qualquer um, mesmo sem a peculiaridade da condição que o apoquentava, agora ponhamo-nos por momentos nos sapatos do José para julgar o quão difÃcil deve ter sido escutar, no ressoar da sua cabeça, a voz estrangeira que a minha é. Agora estou provavelmente a ser julgado pelo caro leitor, Porque fez isso, porque se pôs a incomodar o pobre coitado, já não bastava o homem estar surdo, diga-se de passagem que por sua causa que se julga criador e dono desta vida humana, fazendo e desfazendo a seu bel-prazer, quanto mais agora enlouquecê-lo para brincar com ele como se fosse um boneco de trapos. Justas são as preocupações do leitor, até me enternecem de certo modo, esta empatia entre leitor e José deixa-me comovido,
mea culpa por brincar desta maneira com coisas que não são de brincar. Isto, realmente, não se faz a ninguém, ensurdecer quem nada fez para o merecer e entrar no subconsciente de quem já pena por ser surdo de uma maneira tão especial. Mas recuso-me a aceitar as culpas sozinho, primeiro porque se ensurdeci o pobre homem, e sublinho aqui, mais uma vez, a minha admissão de culpa neste ponto, fi-lo com um objectivo. Que objectivo será esse, pergunta o preocupado leitor, pois que o objectivo não é mais do que criar emoção. Em quem, ora no leitor, pois em quem mais seria. Portanto se o José nada ouve foi por invenção minha e motivação de quem me lê, ora tomem lá esta para aprenderem a não julgar precipitadamente. Disse o primeiro motivo, falta dizer o segundo, que óbvio que na realidade o é, se o José não tivesse ensurdecido, não havia nada para contar. Agora que estamos todos bem esclarecidos quanto aos motivos da minha maldade, nossa digamos assim, voltemos novamente as atenções para quem o merece, já que é surdo e agora para somar a isso ainda ouve vozes.
O José estremecia a cada palavra minha. Não eram muitas as que ele conseguia apanhar, é certo, mas era as suficientes para o pequeno homem se amedrontar. Depois do primeiro impacto que sofreu pouco antes da mulher chegar a casa, fechou-se no escritório, o mesmo onde antes tinha tentado em vão escrever as linhas do seu pensamento omnisciente. Desta vez não tentou escrever nada, de que lhe valia, antes sentou-se no cadeirão e fixou com toda a força a parede branca e nua que lhe estava na frente. Queria esvaziar a cabeça da mesma maneira que naqueles dois minutos de choro tinha conseguido, escusado será dizer que o esforço foi inglório, ninguém consegue não pensar, nem mesmo um surdo como o José, e se antes o conseguiu não foi por vontade própria mas porque o seu cérebro se ia sintonizando com a voz que ouviu. Não que o cérebro funcione como uma telefonia que precisa de ir ajustando a frequência das ondas que capta, mas já vimos que este homem em particular não se rege pelas mesmas regras que todos os outros.
Enquanto olhava para a parede branca o surdo ia pensando maquinalmente na infelicidade de que se estava a rodear. Não era mais aquele surdo feliz que fora em tempos, aquele homem contente por se ver livre de toda a distracção, sentia falta disso. Minto, não sentia falta da distracção, sentia falta de não sentir falta do ruÃdo. Não que ele estivesse agora novamente disposto a aceitar tudo o que todos somos forçados a ouvir, mas porque agora se ia apercebendo do que realmente implicava um completo afastamento auditivo do mundo. Foi percebendo, enquanto fitava a parede, que o ruÃdo não é uma propriedade descolada do mundo, não é algo que se pode simplesmente descartar apenas por gosto, ou vontade de alguém maldoso, não, um isolamento sonoro implicava um afastamento muito maior que tudo isso. Por isso se ia deixando invadir mais e mais de uma tristeza sem fim, de uma mágoa contra todos os que podiam ouvir, talvez a mágoa e a tristeza que se esperava terem tomado conta dele no inÃcio da história mas que só agora lhe chegavam e por motivos muito mais profundos do que os habituais para quem perdia subitamente a audição. Por isso mesmo voltou a chorar, por isso mesmo chorou um choro mais calmo mas mais triste que o anterior, e nesta altura começamos todos a tomar o José por um piegas da pior espécie, coisa que o pobre coitado não é, é apenas a vÃtima de um qualquer jogo malvado. No meio deste choro silencioso e calmo, entra a mulher no escritório, que estava de porta fechada na altura, Que tens, pergunta devagar, para que ele tentasse ler-lhe nos lábios a preocupada pergunta, Que tens, repetiu mais uma vez, ainda mais pausadamente perante a ausência de resposta do homem, Que tens, escreveu no quadro branco que estava na parede para as anotações que fossem precisas ou os recados que fossem necessários, Que tens, Que tens, Que tens. José teve de conter o grito de raiva que estava pronto a explodir no peito, restava-lhe a racionalidade suficiente para suprimir a vontade de descarregar a raiva e a tristeza em alguém, mas ainda assim a força de contenção não foi suficiente para medir as palavras com que lhe respondeu, nem sequer o tom, chegou apenas para controlar o volume e já foi um esforço suficiente. Deixa-me em paz, rosnou-lhe, se ele pudesse ouvir ouvia-lhe a voz no mesmo tom desprezável que a chefe lhe dirigia por vezes, e se pudesse ouvir enojava-se com tamanha tacanhice que nem tudo porque este homem tem passado chega para perdoar aquilo que disse e a maneira como o disse. Quem pôde ouvir foi a mulher, como boa esposa que era perdoou-lhe a falta de consideração sem que ele merecesse, mas saiu em lágrimas porque não era de ferro. O homem chorou ainda mais depois desta cena, mas sempre calmamente, quase que conformado com o destino que eu lhe impusera, deixava as lágrimas escorrerem pela cara mas não chegavam para lhe lavar a esterqueira que sentia que era naquele momento. Isto porque ele foi capaz de ouvir os meus comentários sobre a maneira como o seu rosnar se assemelhou com o da porca que ele tanto detestava e sentiu-se mais próximo dela do que nunca, mais surdo do que nunca se nem sequer era capaz de ouvir nele próprio aquilo que mais odiava.
E durante todo este tempo ia intercalando a tristeza, o choro e o nojo de si pelo pensamento mais óbvio que qualquer um teria nesta situação, Estou louco, estou louco, estou louco, isto enquanto ia ouvindo a minha voz no interior de si. Estás mesmo doido José se já consegues ouvir as vozes das palavras que são escritas e não ditas.
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Também já há parte VIII, não há é fim à vista...