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Autor Tópico: Surdez, parte IV  (Lida 5232 vezes)
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Tim_booth
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Queria escrever à velocidade com que penso.


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« em: Outubro 10, 2008, 18:47:17 »

[Parte I aqui]
[Parte II aqui]
[Parte III aqui]

Está claro que a surdez do José não podia passar para sempre sem ser notada. Algumas horas depois de ter o marido em casa a mulher sentiu a necessidade de lhe perguntar qualquer coisa, o quê não interessa, a verdade é que as mulheres às vezes têm a necessidade de perguntar coisas só pelo prazer de perguntar, deus sabe que elas não querem ouvir a resposta e os homens não querem responder, mas fazem-no, homens e mulheres, um para agradar à mulher, a outra para agradar a esse desejo feminino de fazer perguntas aos homens. Foi uma dessas mesmas perguntas que a mulher do José lhe fez, uma pergunta simples sem qualquer implicação na história que estamos a contar que não seja a descoberta da surdez do surdo. Claro está que o José apenas não lhe respondeu porque a mulher lhe fez a pergunta de outra divisão da casa para a sala e ele, apesar de surdo, não conseguia ver através das paredes, por muito apurados que os seus outros sentidos ficassem. Ela estranhou a ausência de resposta do marido mas pensou que talvez ele estivesse distraído com qualquer coisa. Entrou na sala e voltou a repetir pergunta e também o silêncio do José se voltou a repetir. Isto porque a entrada da sala é nas costas do sofá e não havia maneira de o nosso surdo se aperceber da presença de alguém ali. Desta vez a mulher ficou realmente preocupada, chegou mesmo a pensar que algum ataque cardíaco tivesse fulminado o marido, ele que sempre tinha tido o coração de um passarinho, ou então talvez fosse um AVC que dizem ser uma das principais causas de morte em Portugal, que outro motivo havia para o marido permanecer imóvel e silencioso no sofá da sala sem lhe responder aos seus chamados.
Já o pânico era grande em Margarida, é este o nome da mulher, não que os nomes definam alguma coisa ou modifiquem a ideia que temos de alguém mas são muito úteis aos escritores quando precisam de variar os substantivos que usam para designar os personagens. Se para o José já usava o surdo, o homem ou o próprio nome para a sua esposa via-me limitado a usar mulher ou companheira, assim fico com uma maior margem de manobra para tratar esta flor. Dizia eu que já Margarida entrava em pânico receando pela vida do marido quando este finalmente se move, movido sabe-se lá por que sentido em direcção à entrada da sala onde a mulher se encontrava. Percebeu imediatamente que ela estava preocupada e deduziu que o estivesse a chamar há algum tempo e, vendo-se nesta encruzilhada não teve outro remédio que não o de admitir a peculiaridade da sua condição. Estou surdo, disse. A mulher emudeceu neste momento. Estranho casal que formariam com tal condição. Em ocasiões sociais apresentar-se-iam, Sou José e surdo esta é minha mulher Margarida que não consegue falar. Os ouvidos de um serviriam para o outro e pela mesma boca falariam os dois. Seriam a perfeita história de amor, o complemento ideal um do outro não fosse o emudecimento de Margarida uma coisa momentânea causada pelo choque da notícia do marido que não demorou mais do que um segundo. Estás surdo, perguntou ela sem perceber que ele não a conseguia ouvir. Repetiu a pergunta mais alto, como se fosse uma questão de volume. Repetiu-a mais devagar como se fosse uma questão de compreensão. E depois repetiu para si própria, Estás surdo, como a confirmação de que ele não a ouvia mesmo. Sentou-se ao lado do marido e abraçou-o, talvez na linguagem do abraço ele conseguisse ouvi-la mas como toda a gente sabe as palavras que um abraço pode transmitir, fortes que sejam, são poucas e insuficientes para manter uma conversa.
Margarida, mulher decidida e prática parte em busca de uma caneta e papel, aquilo que o marido não consegue ouvir será certamente capaz de ler. Gatafunha na parte de trás de um sobrescrito velho, O que aconteceu, e mostrou ao marido. Não sei, respondeu ele em voz alta sentindo pela primeira vez a ausência da própria voz, estava no trabalho, naquela altura em que tu me ligaste, a chefe apanhou-me e começou a gritar comigo, de um momento para o outro deixei de ouvir. Não ouves mesmo nada, gatafunhou a mulher, Nada de nada, respondeu ele. Porque é que estás tão calmo, escreveu ela, Não sei. Não devias ir ao médico, e para futura referência, sempre que estes dois estão a comunicar subentende-se que ela escreveu alguma coisa e ele responde em voz alta, Não sei, acho que não será nada de grave amanhã deve passar.
Ela sentou-se ao lado dele e embrulhou-o nos seus braços. Deixou escorregar uma lágrima que lhe molhou o cabelo e que ele não sentiu, não que estar surdo tenha alguma coisa a ver com isto, mas sim por ser dono de uma farta cabeleira. José fechou os olhos e concentrou-se o mais que conseguiu para ouvir o bater do coração da mulher, mas foi em vão. A sua cabeça era um deserto de sensações sonoras e nem o próprio pensamento era capaz de alterar isso. Esforçou-se ainda mais para tentar lembrar-se do que era o som e não foi capaz. Começou por algo complexo, a voz da mulher, tentou ouvi-la novamente, reproduzir a voz grave da mulher e não conseguiu. Depois passou a coisas mais simples, o próprio bater do coração, tentou reproduzi-lo mentalmente, procurou nos arquivos de media que todos devemos ter no cérebro mas foi como se toda a secção áudio da sua cabeça tivesse sido destruída sem sobrar uma música que fosse para lhe alegrar os dias. Nesta altura o pânico que devia ter sentido mas que racionalmente afastou transformou-se em tristeza, não por si próprio mas antes por se saber um peso para aquela mulher que lhe afagava o cabelo, ela que iria pagar as consequências de ser normal e ser capaz de ouvir. Também ele deixou cair uma lágrima que foi até ao chão e nem que tivesse subitamente recuperado a audição seria capaz de ouvir o barulho de uma lágrima a desfazer-se no chão.
De certeza que amanhã isto passa, disse ele para tentar acalmar a mulher e sentir-se ligeiramente mais leve no peso que sabia estar a tornar-se. De certeza que sim, disse ela. Ele não foi capaz de ouvir e ela não foi capaz de acreditar.

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E ainda continua...
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Outubro 10, 2008, 19:54:21 »

O conto vai óptimo, a narração perfeita. Permite-me discordar disto:
"toda a gente sabe as palavras que um abraço pode transmitir, fortes que sejam, são poucas e insuficientes para manter uma conversa." A maior verdade do mundo é que um abraço é a linguagem mais perfeita e eloquente que existe!
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« Responder #2 em: Outubro 10, 2008, 20:01:26 »

Bem, talvez devesse reescrever esse bocadinho. Trocar por algo que diga que num abraço não cabe conversa de circunstância, como estava o jantar e coisas desse tipo.

Obrigado pelo comentário Goreti.

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« Responder #3 em: Outubro 11, 2008, 19:55:39 »

Óptimo. Venha a continuação.
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« Responder #4 em: Outubro 11, 2008, 20:03:06 »

Isto parece é não ter fim damasco... Smiley

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« Responder #5 em: Outubro 11, 2008, 20:06:27 »

Então, ainda não pensaste do desfecho?
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« Responder #6 em: Outubro 11, 2008, 20:08:05 »

Em desfecho propriamente dito ainda não, só na parte fulcral da história e ainda me falta um bocado para chegar até lá...
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« Responder #7 em: Outubro 11, 2008, 20:09:25 »

Ele aparece quando quiser. Há alguns bastante caprichosos.
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« Responder #8 em: Outubro 11, 2008, 20:11:11 »

Isso é bem verdade. Tem sido ele a conduzir-me, por isso é que só agora a Margarida se me apresentou.
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« Responder #9 em: Outubro 11, 2008, 20:20:42 »

As histórias vão-se escrevendo a si próprias. Já dizia o Lobo Antunes... José. Foi curioso teres escolhido este nome. A Margarida só se te apresentou quando lhe deste um nome? Curioso...
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« Responder #10 em: Outubro 12, 2008, 00:16:38 »

Mas é verdade. O José apareceu-me e só a meio da primeira parte é que descobri que ele se chamava José. Não pensei que nome lhe dar, não reflecti sobre significados escondidos nada. A mesma coisa com a Margarida, pensei agora ficava bem tratar a mulher pelo nome dela, O meu nome é Margarida, diz-me ela dentro da minha cabeça. E assim ficou. Já tenho mais uma parte escrita mas quero escrever outra antes de vos mostrar essa, gosto de ficar sempre com uma parte de buffer, não me perguntem porquê...

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« Responder #11 em: Outubro 12, 2008, 10:48:33 »

Pode ser que o buffer seja para não largares completamente a história, até esta estar concluída... se a deixas ir toda, lá vai ela à fonte e não volta (esta é para o D. Dinis).  Smiley
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Tim_booth
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« Responder #12 em: Outubro 12, 2008, 11:43:16 »

É possível... Para já está a resultar, hoje devo escrever mais...


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