[Parte I aqui][Parte II aqui][Parte III aqui][Parte IV aqui][Parte V aqui][Parte VI aqui][Parte VII aqui]Durante todo o dia o pobre homem não saiu do escritório. Não tinha sequer coragem de sair à sala para ver se em que estado tinha deixado a mulher com as suas irreflectidas palavras, teria-a talvez se fosse capaz de manter uma conversa como gente normal, mas não era, as respostas da mulher teriam de ser escritas e portanto eram muito mais pensadas do que se espera numa discussão ou numa reconciliação, ou talvez mesmo que fosse não tivesse essa coragem porque José era um homem muito avesso a conflitos, principalmente aos conflitos com a mulher. Deixou-se portanto ficar todo o dia enterrado no cadeirão do escritório matutando permanentemente na sua loucura, se é que a tinha, sem explorar todo o potencial do seu cérebro desprendido da linguagem. Por vezes conseguia ouvir a minha voz claramente, enquanto eu lhe ia descrevendo o mesmo que escrevo, outras vezes conseguia abstrair-se de mim. Tentava a todo o custo ignorar-me mas com o passar da tarde foi percebendo que era escusado, não havia meio de a minha voz se ir embora da sua cabeça, eu era omnipresente dentro dele, muito a contragosto diga-se de passagem que normalmente não gosto de tirar protagonismo a quem o merece.
Eventualmente desistiu de me ignorar, não que eu estivesse a fazer questão de entabular conversa com o surdo mas também era falta de educação da minha parte escusar-me a responder, se era o único que ele conseguia ouvir. Pobre homem que já sentia falta de uma conversa, mesmo que consigo mesmo, mesmo que louco. Quem és tu, começou por me perguntar em voz alta mas não suficientemente alta para se ouvir fora do escritório, bastava-lhe a ele pensar que já estava a endoidecer, não precisava de preocupar mais a mulher com isso. Não respondi de imediato, na verdade não sabia como responder, o que se responde a uma pergunta como essa, Quem és tu, sou certamente muito mais do que em palavras se pode explicar porque nelas não se resume uma vida. Respondi-lhe com uma simples pergunta, porque dizem que responder com outra pergunta faz-nos parecer inteligentes, o que é uma completa mentira, quem souber esta táctica apanha-nos com a boca na botija, por assim dizer, que é como quem diz com a boca a tentar parecer inteligente. Quem dizes tu que eu sou, respondi. O homem pareceu congelar por um momento, sabia que já tinha ouvido aquelas palavras nalgum sÃtio, aquelas ou outras similares, tinha quase a certeza que a religião estava envolvida mas recusava-se a aceitar que o próprio deus lhe falasse assim tão directamente, é claro que pensando ainda melhor, quem mais poderia ser capaz de lhe falar directamente ao cérebro que não deus ou a sua própria insanidade. É claro que nada disso me disse o que não interessa, porque como já vimos sou senhor omnipresente e omnisciente nesta história, deus se assim quiserem, sem ser divino, de todo. Apenas me respondeu, ou antes se respondeu a si próprio, Estou a endoidecer, sentia-se cada vez mais perdido o pobre do José, tão perdido que me chegou a fazer pena. Pobre homem, aquela cara tão triste, parece um cachorro a quem lhe negaram a comida, sem forças para lutar e sem vontade para o fazer. O surdo estava a partir-se em cacos sem vontade de se colar. Digo-lhe então, Porque dizes isso, Porque não consigo ouvir nada do mundo e agora ouço-te a ti, dentro da minha própria cabeça, não há outra explicação que não a de estar a enlouquecer. Não há dúvidas de que a lógica do surdo é à prova de bala, procuro palavras para o confortar mas sei que não existem. Efectivamente se os papéis se invertessem, se fosse eu o surdo e o José o narrador então muito provavelmente a loucura também seria a minha primeira conclusão. Errada ou não estamos longe nesta altura de avaliar. Paramos a nossa conversa por aqui porque entretanto entra Margarida no escritório com uma chávena de café com leite e bolachas, preocupada com alimentação do marido. Eu, preocupado com a saúde mental da mulher, calo-me e ouço o secreto agradecimento da mente do José, Obrigado por te calares. De nada amigo.
Não saÃste daqui o dia todo, disse a pobre Margarida enquanto escrevia as mesmas palavras no quadro branco para que o marido a pudesse entender. Pois não, respondeu ele, seca e envergonhadamente. Porquê, pergunta a preocupada mulher, Não sabia o que te dizer. Não tinhas que dizer nada, desta vez já deixou de escrever, percebe-se que este diálogo já entrou para além das palavras para aquele entendimento indizÃvel que algumas pessoas têm entre si, Tinha sim, responde o surdo enquanto as lágrimas recomeçam a cair serenamente, escorregando como se fizessem já parte do rosto do homem. A mulher acompanha o choro silencioso do marido, são um agora, choram em silêncio simultâneo, ela aproxima-se do cadeirão e beija-o apaixonadamente.
Escusado será dizer o que se passou a seguir, mesmo os surdos têm desejos, também amam, este em particular tem um interminável apetite sexual que apenas foi ligeiramente afectado pelo choque de não poder ouvir os gemidos da mulher. Mas o que se passou naquele escritório foi mais do que o simples sexo, o que se passou ali não foi o mesmo que se tem numa
one night stand, não foi o mesmo que se tem quando se paga a alguém na rua para aliviar os fluÃdos que se acumulam, nada disso, foi muito mais, foi diálogo, foi verdadeira união, foi todos aqueles lugares comuns que ouvimos quando falamos em sexo com amor, bem misturados numa superfÃcie lisa entre dois corpos de uma mesma alma, que diga-se de passagem era o que acontecia com a Margarida e o José, foi tudo e muito mais do que isso.
Obviamente que por respeito ao surdo e à sua esposa não fiquei por lá a espreitar o que se passava, fecho assim uma cortina à minha frente e à frente do leitor, tapando o escritório por completo e tornando-nos a nós todos tão surdos como o José a todo o som que se produzia naquela sala, que apesar de tudo somos perfeitamente capazes de imaginar e reproduzir mentalmente, mas não o façamos, assim o homem foi capaz de ter alguns minutos de privacidade que já não tinha desde que a surdez primeiro o atacou. Como sei então que foi aquilo tudo que disse, porque o próprio homem me confidenciou isso mesmo, algum tempo mais tarde, quando a mulher saiu do escritório para a cama e ele permaneceu no cadeirão. Porque me confessou a mim, se não me conhecia de lado nenhum, por ser eu o único capaz de lhe responder. Mais uma vez me agradeceu a minha ausência num momento que se quer Ãntimo e eu disse-lhe que não fazia intenção de tornar a minha omnipresença num canal de pornografia, que para isso tenho muito por onde me divertir com a
internet, Obrigado, retorna ele.
De nada amigo.
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Já há parte IX e já há fim à vista, amanhã devo escrevê-lo...