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Autor Tópico: O Velho que decidiu deixar de o ser, parte III  (Lida 5717 vezes)
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Tim_booth
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« em: Novembro 19, 2008, 18:15:26 »

[Parte I aqui]
[Parte II aqui]

Fechei os olhos e adormeci. Quer dizer, acho que adormeci. Quando os voltei a abrir não estava mais lá no depósito da terceira idade, estava num sítio diferente, que, a princípio, não reconheci, mas que me parecia familiar. Estranhamente familiar. Olhei para as mãos – não sei porquê, mas o primeiro instinto que tenho nestas alturas é olhar para as minhas mãos – e não eram minhas. Ou por outra, eram, respondiam aos meus movimentos, fechavam-se quando eu queria que se fechassem e sentia os músculos como meus. Mas não eram as mesmas mãos que eu tinha quando adormeci, eram as mãos que eu tinha há cinquenta ou sessenta anos atrás, sei lá. As manchas hepáticas tinham desaparecido, parecia que se tinha agarrado mais carne aos meus ossos e, já que deles falei, deixaram de me doer quando fazia um punho apertado. Deixem-me ficar assim, com as mãos bem estendidas à frente dos meus olhos durante uns bons minutos, estava deliciado com elas. Sabia, quer dizer, achava que sabia, que estava a sonhar mas ainda assim senti-me bem. Que deixem um velho deixar de o ser quando sonha, acho que não é pedir em demasia.
Olhei, então, em frente, e vi-me numa casa que foi, em tempos muito idos, minha – isto é, onde eu morava. Essa casa não existe mais – era antiga, muito antiga mesmo, já o era quando eu lá morava, é provável que, se ainda existisse, fosse muito mais velha do que eu sou agora, quando estou acordado claro está. De certa forma tenho inveja das casas. Quando deixam de servir não as põem em nenhum asilo para casas, não lhes dão umas sobras de dinheiro ao fim do mês enquanto dizem altivamente “Governa-te com isso, é simbólico, por todos aqueles anos que foste uma casa útilâ€, não esperam que as casas tenham a iniciativa de ruir por si próprias, nada disso. Simplesmente, quando deixam de ser úteis, habitáveis, são demolidas e fazem-se casas novas, jovens, cheias de força e vida, no seu lugar. Os homens deviam de ser como as casas, devia ser demolidos quando chegasse a altura e não serem obrigados a esperar enquanto as fundações são carcomidas pelo tempo, em agonia constante, que ruam de uma vez por todas. Eu não me importava de ser demolido, eu preferia ser demolido, eu preferia isso a estar à espera de ruir.
Reconheço o tempo com que estou a sonhar. Engraçado, chega-se a uma altura da vida e é como se a imaginação se desvanecesse. Quando era jovem e sonhava, nas poucas noites que conseguia dormir e nessas nas ainda mais raras em que sonhava, era sempre com o futuro ou o impossível ou o fantástico ou qualquer outra coisa que me fosse estranha. Não foram poucas as vezes que sonhei com a minha falecida esposa antes de nos casarmos. Às vezes o sonho era só provocado pela falta de sexo, e sonhava com isso. Outras, mais raras e mais saborosas, sonhava simplesmente em pequenos momentos da nossa vida futura, acordar ao lado dela, levar os filhos à escola, ver televisão com ela, coisas simples, mas esses eram os sonhos mais vívidos, acordava com a sensação de que ela estava ao meu lado. Eram bons sonhos. Outras vezes sonhava que tinha poderes especiais, que era capaz de voar, que tinha força sobre-humana, que era capaz de parar o tempo conforme me apetecesse – com isto sonhava muito, parava o tempo e as pessoas ficavam congeladas à minha volta, como nos desenhos animados. Mas isso era dantes, quando era jovem, agora parece que só sonho com coisas do passado. Tem acontecido muitas vezes. Das vezes que consigo dormir, que continuam a ser poucas, dessas as em que sonho, que continuam a ser raras, agora são sempre com o passado. O número de vezes que sonhei que estava novamente nesta casa, nesta altura da minha vida, já lhes perdi a conta.
Reconheço o tempo pelo vazio da casa. Também não vivi nela durante muito tempo, é certo, cinco anos não é muito tempo. Mas ela só esteve assim, tão vazia, durante uns três ou quatro meses, os primeiros em que lá estive. Sozinho. A primeira vez que vivi às minhas custas. Ainda era novo, tinha uns dezoito anos, não mais, a minha mãe tinha morrido, o meu pai nunca o conheci, os meus irmãos, todos mais velhos, já estavam casados. Vi-me sozinho na casa da minha infância e não queria estar mais lá. Andei ao mar desde os meus doze anos, já me sustentava há muito, a mim e à minha mãe que não podia trabalhar. Mudei-me para aquela casa mínima – hoje em dia chamar-lhe-iam minimal, ou, mais prosaicamente, buraco – que para mim era tudo. Só tinha uma cozinha, um quarto e uma casa de banho, mas eu não precisava, nem queria, mais. Quando me mudei para lá só tinha uma cama, uma mesa na cozinha e uns velhos armários que nunca descobri como se mantinham agarrados à parede. Era esta casa despida que eu tinha diante de mim, no sonho, ou no que eu achava ser o sonho. Reconhecia-a quase imediatamente.
Não tinha espelho, por isso usei as mãos, as mãos que tinha há uns cinquenta ou sessenta anos atrás, para apalpar a minha cara e senti a barba que despontava forte, as bochechas que não eram flácidas como agora, as rugas da testa que não existiam e desejei que estivesse ali um espelho para ver a face que eu sabia ser a minha, há cinquenta ou sessenta anos atrás. Estava a sonhar, ou assim julgava, com a época da minha vida onde fui mais feliz, onde, pela primeira vez, só tinha de tratar de mim, e era capaz de tratar de mim, ao contrário de agora. É triste, admito, que para um homem o seu período mais feliz fosse quando vivia sozinho e não tinha nada. Mas os homens são estranhos e eu sou mais estranho do que eles todos. Às vezes penso que a morte é isto mesmo, o retorno ao tempo onde nos sentimos mais nós, onde fomos mais verdadeiros com o mundo, ao tempo onde fomos mais homens e menos máquinas.


-----------------------

Continuará [acho eu].
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vitor
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Olá amigos.


« Responder #1 em: Novembro 19, 2008, 18:21:50 »

 "e vi-me numa casa que foi, em tempos muito idos, minha"
rs, continua claro, estou a gostar. abraço.
vitor burity da silva
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Goreti Dias
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« Responder #2 em: Novembro 19, 2008, 18:40:18 »

Se a morte fosse isso...
Quero ver onde pára o sonho...
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Tim_booth
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« Responder #3 em: Novembro 19, 2008, 21:27:50 »

Vitor, obrigado pelo comentário, vai continuar com certeza (apesar de não ter nada escrito - No buffer this time...)

Goreti, bem, posso-te adiantar que o sonho acaba aqui (em princípio). Não é esse o aspecto (o sonho) que pretendo  explorar com este conto. É esperar para ler Smiley

Muito obrigado aos dois pelos comentários.

Cheers
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Goreti Dias
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« Responder #4 em: Novembro 19, 2008, 21:50:48 »

Então eu espero!
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Laura Gil
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« Responder #5 em: Novembro 20, 2008, 01:58:34 »

"De certa forma tenho inveja das casas. Quando deixam de servir não as põem em nenhum asilo para casas, não lhes dão umas sobras"...
Força amigo, quero continuar a ler este sonho.

Beijo
Laura
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Luis F
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Nas asas do sonho, escrevo...


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« Responder #6 em: Novembro 20, 2008, 09:35:59 »

Tim...

Adoro ler o que escreves, por isso apenas espero pela part IV (não demores)

Um abraço
Luis
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Tim_booth
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« Responder #7 em: Novembro 20, 2008, 15:25:43 »

Goreti, Laura e Luis, muito obrigado pelos vossos comentários. A história do velho vai continuar, sem dúvida.

Cheers
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damasco
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« Responder #8 em: Novembro 20, 2008, 23:01:10 »

Well done, well done. Go on.
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« Responder #9 em: Novembro 21, 2008, 19:13:16 »

Dite e Damasco, muito muito obrigado pelas vossas palavras. No fim-de-semana deve haver mais.

Cheers
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britoribeiro
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« Responder #10 em: Novembro 23, 2008, 19:22:54 »

O fim-de-semana está a terminar e ainda não surgiu a continuação...
 :book:
Não há problema, nós esperamos!

Abraço
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« Responder #11 em: Novembro 23, 2008, 21:36:05 »

É verdade, estou a falhar... talvez ainda hoje, quem sabe...
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Mel de Carvalho
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« Responder #12 em: Novembro 27, 2008, 22:23:40 »

Tim, só lhe digo, correndo o risco de me repetir, que este site ganhou muito/muitíssimo em contar com a sua escrita. com a sua análise detalhada e lúcida sobre o mundo.

aguardo a continuação.

grata pela partilha
abraço da Mel
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Mel de Carvalho
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« Responder #13 em: Novembro 29, 2008, 00:02:55 »

Então e o resto, Tim? Estamos à espera!
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marcopintoc
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« Responder #14 em: Novembro 29, 2008, 01:37:20 »

Tim,
Tenho o "Surdez" ainda para terminar e comentar e já estás em produção de outra obra que aparenta uma boa extensão. Um aplauso à tua determinação e afinco e um pedido de desculpas à ausência de comentário às tuas criações maiores . Em breve remediarei .Neste momento navego em águas agitadas.
Abraço
Marco
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa noite para todos.
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Bom domingo para todos.
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