marcopintoc
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« em: Abril 01, 2009, 22:52:45 » |
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Esta era uma noite em que a cidade iria dormir mais tarde. Era a noite das noites e o tráfego corria apressado entre as ruas molhadas e a ansiedade da época. A rádio anunciava longas filas nas saÃdas para as pequenas aldeias e que já quatro haviam morrido antes de ser natal. Numa rua da parte velha da cidade o frio e a bátega eram infrutÃferas contra o vapor que se formara nas grandes vitrinas encobrindo, em circunspecção e calor, os convivas. A porta, onde uma elegante lanterna ancestral alumiava um menu que desconhecia os preços de um só dÃgito, abria-se ocasionalmente para deixar entrar alguém. O restaurante seria apenas mais um dos inúmeros que se espalhavam pela urbe se não tivesse a particularidade de ser o único aberto na noite de Natal. Esse inusitado horário de funcionamento criara, inicialmente, algum burburinho nos meios mais conservadores da cidade. Falara-se de pecado e de ignobilidade, de gentes de fés estranhas e hábitos indesejados. Mas, todavia, o restaurante aliava a uma gastronomia refinada um cumprimento escrupuloso de todas as leis do paÃs e do municÃpio pelo que ninguém pode impedir que ,na noite mais santa das noites ,a chaminé continuasse a fumegar largando pela vizinhança o aroma de açafrões de outras paragens e da mestria do chefe. Então , estando vazias de argumento a lei e a ordem , restou aos habitantes da cidade vilipendiar os comensais que não cumpriam o massivo ritual da famÃlia e do peru . Risos de escárnio haviam baptizado o evento de “Jantar dos sósâ€. Havia-se urdido, à s mesas dos normais, que era lugar de gente sem famÃlia, de loucos , de amantes do mesmo género e de adoradores do demo. Que decerto conscritos da indecência se sentavam aquelas mesas cobertas do mais branco linho que terminava, com uma elegância voluptuosa, a exactos dois centÃmetros do soalho de madeira antiga onde os passos dos garções ecoavam como prelúdios da sonata que o serviço de prata maciça entoaria retalhando as exclusivas criações de um chefe cujo nome tinha a pronúncia das grandes delÃcias do oriente longÃnquo onde o Cristo nado esta noite não era adorado. Invejados eram os homens e mulheres que se sentavam aquelas mesas onde a fragrância do vinho ancestral pairava entre a porcelana e as narinas. Uma maré forte feita do suor e do amor dos homens e mulheres , há tantos mortos , que haviam vindimado , pisado , feito sangue de Cristo aquelas uvas .Crisálidas do palato que convidavam as bocas a serem meigas e lentas em redor do bocal e da deglutição. A maledicência que se proferia sobre aquele restaurante tinha, todavia, alguns fundamentos. Num canto, numa mesa discreta sobre a sombra e um velho óleo de um mestre holandês, os olhos serenos de dois amantes terminais dançavam o tango do adeus. Dois homens, outrora belos agora carcomidos pelo vÃrus, afagavam com o néctar das vinhas da Nova Zelândia o sabor dos láudanos que aliviam as dores. Em outra mesa a amante secreta do ministro engolia o prato mais caro com a voracidade das putas de rua , à sua frente o lugar estava vazio. As conversações tinham-se em tom baixo , como se as palavras não quisessem ir mais altas que a chama que ardia no topo dos candelabros .Escutavam-se vários idiomas , a seda e o negro predominavam entre os ocupantes do restaurante. O espaço não era de grandes dimensões mas combatera o acanho do solo com o esplendor do pé alto onde um magnificente lustre de cristal vianense brilhava como um olho de uma dama que apenas revela uma pequena parte do seu fulgor. As paredes estavam cobertas de pinturas. Os óleos predominavam, a espaços uma peça mais moderna dizia aos que estavam sentados entre o linho e o veludo que a arte era bem-vinda aquela casa. Talvez fosse por isso que o mais ilustre escultor da cidade elegera o espaço para a sua noite sem azevinho e presépio. Velho , decrépito , tremores de Parkinson que o faziam viver apenas da fama pois a sua arte ,o seu punho guiado pelo fantasma do grande mestre , havia parado. Isso enlouquecera-o, fizera-o envelhecer como a folha de papel que não recebe a palavra e acaba por definhar em esquecimento. As ideias, as ideais que o assolavam incessantemente e as malditas musas maléficas que lhe relembravam quem não podia voltar a ser através de um punho em eterna convulsão . Compensara isso com o mais debochado aproveitamento das admiradoras do sexo feminino. Mulheres que acreditavam que seus corpos tonificados mereciam a goiva. Mulheres que eram belas até ao excesso, tal como a companheira do escultor nesta noite, onde nada de santo e sagrado pairava pela alma atormentada do artista. A mente pedia que o recorte perfeito das linhas da jovem mulher fosse eternizado na pedra, a baba que escorria ao canto da boca orava a um deus qualquer que lhe desse um bocado de tesão esta noite. Encontrava-se vago o lugar de topo da mesa de onde estavam sentados os quatro homens. Uma primeira rodada de aperitivos era acariciada com alguma impaciência pelas falanges que envolviam os cristais. Decerto quem esperavam era alguém importante. Ou talvez apenas tivessem fome. A posição da mesa, junto à enorme lareira onde um fogo reconfortante ardia , dava especial destaque à s silhuetas das quatro figuras. Quem entrasse pela porta principal, decerto seria atraÃdo pela imagem, algo demonÃaca, de quatro vultos negros sobre a parede de chamas. De uma área reservada, no canto oposto ao dos pederastas , da mesa ocupada exclusivamente por homens de trajes antigos e barbas fora de moda escutou-se a saudação dos Riedel e a troca de votos de vida longa aos cavaleiros de uma ordem há muito extinta. Os risos e a bazófia dos hereges despertaram leves sorrisos em dois dos homens da mesa que esperava alguém. No exterior o silêncio da rua foi entrecortado por um táxi que levava um coração aflito à s urgências hospitalares. Poucos minutos depois a noite silenciosa foi rasgada pelo som dos cascos. A invulgar aparição de dois negrÃssimos corcéis que puxavam uma carruagem, onde o cetim das madeiras brilhava mais intenso que o negrume da noite ,não foi vista por ninguém. Nenhum dos vizinhos assomou à janela, tão entretidos que estavam com o especial televisivo e a algazarra das crianças, para vislumbrar o trote elegante dos alazões, o troar do longo chicote empunhado pelo cocheiro embuçado. Um puxão forte nas rédeas deteve os cavalos junto à porta do restaurante. Sem revelar um centÃmetro do seu rosto o cocheiro desceu de seu assento e abriu a porta; dois degraus retrácteis esticaram-se em direcção à calçada. O primeiro deles foi pisado pelo altÃssimo tacão de um sapato de mulher , o tornozelo que o usava era belÃssimo , uma longa capa onde o arminho era exibido sem pudor encobria o resto do corpo e o rosto da figura feminina que, lestamente ,entrou no restaurante. A cartola do porteiro descobriu-se com a naturalidade que a nobreza do passo da mulher obrigava. Uma mão, onde algumas rugas faziam conjunto com um anel brasonado cujos quilates e delicado cunho atestavam ser de longa linhagem, estendeu-se para que o empregado pudesse recolher o agasalho. O intolerável som do silêncio invadiu a sala de jantar quando a porta se abriu e a delgada e alta figura da mulher se perfilou na ombreira. Dezenas de olhos, escravizados pelo magnetismo do longo vestido negro colado ao corpo ainda extraordinariamente firme e esbelto da mulher de enormes olhos verdes , prestaram a vassalagem que a sua beleza imperava . O passo fazia balouçar ligeiramente os seios e as ancas. A justeza do vestido e a delicadeza do tecido não apresentavam qualquer traço revelador de roupa Ãntima. O enorme decote, que terminava num vale generoso era adornado por uma enorme corrente de ouro onde uma esmeralda fulgurante trespassava o pasmo dos comensais como se de um terceiro olho se tratasse. Ao fundo da sala, junto ao fogo, os quatro homens que esperavam levantaram-se e compuseram os casacos. O gesto de respeito acentuou-se quando as quatro cabeças se inclinaram ligeiramente. A luz rubescente do fogo revelou que o rosto da recém-chegada já há muito passara a juventude e que aceitara o cair das rugas com uma firmeza na postura que a autenticava com a palavra “Senhora “ que ecoou das gargantas dos homens que haviam, intranquilamente, aguardado pela sua presença. Um pequena pausa fez-se até que o empregado completasse o gesto de a sentar à cabeceira da mesa .Depois os rostos permitiram-se a encará-la; e que belos eram os rostos dos homens que saudavam a mulher mais velha que se sentara no lugar de honra. ( Continua)
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