Marília
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« em: Novembro 14, 2007, 18:39:36 » |
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A VELHINHA DO DOCE DE LEITE ( HISTÓRIA IMPERDÍVEL) Marília L. Paixão
O doce de leite mineiro é tão conhecido e famoso como o nosso pão de queijo. No sul de minas, então há uma variedade de sabores e misturas que o doce de leite nos proporciona de forma até artesanal. Os vidros são decorados até com bordados! E em certas paradas de ônibus você pode encontrá-los até pelo triplo de seu valor por aqui. Mas como eu sou rodeada por eles, tanto por morar em área central, como por freqüentar ambientes próximos aonde eles mais são vendidos, nem to aí para eles e na verdade até evito o consumo. Eu estava no meu primeiro ano morando nesta redondeza e num corriqueiro dia uma velhinha se aproxima de mim com uma sacola branca e me pergunta se eu não quero comprar... – Como? – você não quer comprar doce de leite, minha filha?! – Eu não tinha mesmo entendido bem. A voz da velhinha era baixinha ou eram os barulhos dos carros da rua. – Doce de leite. – Você não quer doce? – Doce? – Se eu quero doce? – É filha, doce de leite caseiro. Eu quem faço. Com leite puro e açúcar. Agora eu estava entendendo melhor a vozinha dela. Mas na verdade eu não queria doce de leite era de jeito nenhum! Tinha começado um regime naquela semana e estava cortando uma volta para evitar o chocolate, imagine se eu iria por tudo a perder por um doce de leite. – Não quero não, dona. – Mas é muito bom o meu doce de leite! Você vai gostar muito dele. – Não... mas não quero não dona, não estou podendo comer doce de leite de jeito nenhum. – Mas quanto é o doce da senhora? – Seis reais. Ela levou a mão na sacola e me mostrou um vidro de doce de leite igual os que vendem nos supermercados. A diferença era que no supermercado o preço era quatro reais e em alguns quatro e cinqüenta. Veio-me um pensamento de que talvez a velhinha fosse um pouco louca. Eu já tinha experimentado do doce de leite do supermercado e ele era com certeza delicioso. Será que o dela era mais gostoso ainda ou o dela não era o dela e ela estava carregando aquele peso todo da sacola só para ganhar os dois reais de cada doce de leite que vendesse? Decididamente não queria o doce de leite nem se fosse de graça por causa do meu regime. A velhinha foi embora muito tristinha e eu fiquei reparando ela indo embora com a consciência não muito boa. Estava me sentindo egoísta e má. Que se danasse o meu regime! Eu tinha era que ter comprado o doce da velhinha por que ela era velhinha e talvez aquele dinheiro fosse importante para ela. Lá longe ela sumia e eu ali parada me sentindo um monstro. Tanto que aquilo me transtornou que eu até esqueci o que mais tinha que fazer no centro. A vontade era de ir atrás da velhinha e dizer que eu queria o doce de leite sim. Mas a parte de mim que não queria o doce de leite movimentou minhas pernas um pouquinho para frente e um tantão para trás. A vontade de não me engordar com o doce de leite venceu minha bondade (pelo menos foi essa a desculpa que eu arrumei para não gastar o dinheiro com o doce, afinal se fosse para eu engordar que fosse com chocolate!) Já passei minha infância engordando com as cocadas e os doces também de leite que minha mãe fazia. Sem falar em mingau de milho verde, canjica, pé de moleque e arroz doce. Agora eu engordo é com sorvete e chocolate da Nestlé, os talentos da garoto ou as trufas caseiras aqui do sul de minas... Tadinha da velhinha. Foi oferecer o doce de leite justamente para uma chocólatra. E lá ia ela com a sacola pesada dela andando devagarzinho e ficando cada vez mais longe e minha consciência cada vez pesando mais. Pensei até em correr atrás dela... mas aí o meu regime ia para aquele lugar e depois do doce de leite não me conformaria e iria também comprar chocolate. Não fui! Fiquei firme parada me sentindo a pior das criaturas e a velhinha sumiu com suas costinhas curvadinhas. Não sei quanto tempo, talvez uns dois meses ou três e vejo a mesma velhinha no supermercado. Fiquei olhando ela de longe para ver se ela não ia comprar os doces de leite da prateleira. Ela nem parou perto deles. Também eu não queria ficar frente a frente com ela. Eu não queria que o meu coração sofresse aquilo tudo de novo. Disfarcei-me por ali afora bem na prateleira dos chocolates... e fui mudando de alas...peguei meu pó de café... A fila da carne estava longa eu é que não iria nela. Mas nada mais importava. Eu queria saber era da velhinha. Reparei que ela continuava limpinha. Se aquele dia eu tivesse reparado mais no rosto dela eu até poderia tentar adivinhar-lhe a idade, mas naquele dia eu só enxergava a minha própria barriga e hoje eu estava sem cara ou coragem para encarar de frente a velhinha. Estar frente a frente seria como encarar um erro, uma maldade, uma crueldade, eu não saberia explicar bem o meu desconforto. Eu estava perto de uma pilha de cerveja quando a vi novamente. Ela passou e foi para o caixa. Tinha nas mãos uma caixa de fósforos. Tirou de dentro da outra mão uma mini bolsinha e dali saíram as moedas que foram parar na mão da moça do caixa. De onde eu estava eu podia ver-lhe o rosto perfeitamente. Parecia mais cansado que o daquele dia e ela nem estava carregando nenhum peso. Talvez naquele dia ela tivesse no rosto a esperança de que eu ia comprar um de seus doces e naquele momento nada ela tinha para vender. Talvez naquele momento nada ela tivesse que desse garantia de algo melhor em sua vida. E dali eu vi tristeza maior ainda de quando eu lhe disse que não queria o doce. Senti vontade de chegar perto dela e perguntar se ela não estava mais vendendo doces. Talvez ela estava doente, tadinha. Talvez fosse só aquele dia que ela estava vendendo doce. Fiquei divagando... Talvez ela sofria de Alzheimer....De novo eu me senti mal vendo a velhinha indo embora sem eu fazer nada por ela. Está quase fazendo dois anos que moro aqui e hoje encontrei a velhinha atravessando a rua. Eu tinha acabado de comprar uma trufa e tinha dado uma mordida nela. Uma mão segurando uma trufa e a outra, uns livros. Eu e ela no meio da avenida. Ela disse. – Eu tenho medo de atravessar essa rua! – Mas essa rua é perigosa mesmo. Passa muito carro o tempo todo. - A gente tem que atravessar com muito cuidado. A senhora pode segurar no meu braço se a senhora quiser. Ela quis, virou para mim disse: - Eu vendo doce de leite, você não quer comprar? Achei que Deus estava sendo bondoso demais comigo me oferecendo aquela outra chance com a velhinha. Acabei de atravessar a rua já pensando que ia levar para casa um doce de leite eu querendo ou não. Dessa vez sabia que ia levar! Mas ela não tinha nenhuma sacola nas mãos. Não estava carregando nada. E olhei bem para as manchinhas de idade no braço dela e perguntei: - Mas cadê o doce? - Eu deixo numa loja, pois não agüento ficar carregando mais não. Mas é aqui pertinho, a moça me deixou guardar lá. - E quanto é o doce? – Dez reais! - Eu vou lá com a senhora ver. – Sou eu mesma quem faço gasto três litros de leite com cada doce que eu faço. Claro que vocês sabem que eu não queria doce de leite. Enquanto comi o resto da trufa e ainda tinha o papel dela na mão, lembrei que na semana passada tinha comprado geléia de ameixa que custa o mesmo tanto que o doce de leite vendido lá: Seis reais. Mas se a velhinha falasse que o doce de leite dela custava vinte reais eu ia comprar assim mesmo. Afinal, para ir para o céu a gente faz qualquer coisa.
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