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Autor Tópico: O Caminho (19)  (Lida 1509 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Outubro 21, 2009, 13:20:53 »

- Lembro-me - disse Pace, - de passar os dias na oficina do meu pai a vê-lo criar máquinas maravilhosas. Era um barracão enorme no centro da propriedade da nossa família. Era um mundo dentro do mundo, completamente distinto de tudo o que eu, criança, via fora daquelas paredes. O meu pai era um coleccionador de coisas velhas. A oficina dele estava atulhada de maquinaria antiga, especialmente dos tempos da engenharia a vapor que liderou a revolução industrial no meu mundo. Coisas enormes, barulhentas e desajeitadas, com caldeiras, cilindros, válvulas, molas e pistões. A nostalgia do meu pai por essa época era tão grande que a nossa casa estava equipada com canalização baseada no motor atmosférico, uma tecnologia do início do século XVIII que ele aperfeiçoou e adaptou também para a utilizar na irrigação dos nossos campos de cultivo. Avariava frequentemente, mas o mau pai gostava de consertar as suas máquinas tanto quanto de as construir. Não tenho a certeza que ele não as criasse propositadamente imperfeitas para depois poder aprimorar o seu funcionamento. Costumava dizer que era assim que Deus funcionava. Ele fazia esta analogia constantemente. Sobre um criador de coisas imperfeitas. E se na oficina dele eu olhasse em volta, veria inúmeras máquinas imperfeitas, inacabadas. Ideias que o meu pai tivera, um dia, e que nunca chegara a desenvolver completamente. Algumas nunca funcionariam e ele, quando chegava a essa conclusão, abandonava-as ao pó e às teias, debaixo de toldos e lençóis tão velhos quanto os desta cama. Algumas quase funcionavam e de vez em quando ele voltava dedicar-lhes o seu tempo, dando-lhes uns retoques, tentando que encontrassem a sua finalidade e a realizassem, nem sempre conseguindo e deixando a sua resolução para outra altura, para quando a inspiração regressasse. Outras máquinas ele desenhava e construía de forma maníaca como se fossem o seu maior invento, desaparecia durante meses na sua oficina até, de repente e sem razão nenhuma, as largar à ferrugem para nunca mais lhes voltar a pegar. O meu pai era assim como Deus. Um criador imperfeito, criando coisas imperfeitas e nunca realmente satisfeito com nenhuma das suas criações. Criando fantasmas.

Bliss nunca tinha ouvido Pace falar durante tanto tempo seguido. Falava baixo e sem deixar transparecer aos outros muita emoção. Falava enquanto escolhia de cima da colcha os últimos e cada vez mais minúsculos componentes do seu terceiro braço, agora perdido. O último dos braços do meu pai, dissera ele quando Worms lhe perguntou porque era aquela coisa tão importante para ele. Se o ouvisse, talvez o homem alto do chapéu de abas chegasse à parte em que explicaria aquela resposta tão críptica. No mesmo tom, e porque nenhum dos presentes no quarto de casal do Motel da Escuridão parecia querer pegar em algo do que ele tinha dito para colocar questões, Pace prosseguiu.

- A oficina do meu pai era habitada pelos fantasmas das ideias dele. E porque a tecnologia que apelava ao seu espírito nostálgico fazia lembrar séculos passados, a sensação de viajar para o passado assim que eu entrava no barracão era irreprimível. Era impossível não ligar aquele lugar aos romances steampunk que o meu pai devorava avidamente e que eu, incentivado por ele à leitura desde pequeno, também adorava. Entrava naquele mundo como entrava nos mundos que os livros descreviam, e perdia lá dentro. Quando saía, já o sol se punha por trás da copa das árvores do bosque e sentia-me…

- O Sol? – Worms moveu-se desconfortavelmente na cadeira como se algo lhe tivesse a morder o rabo. E estava. – Viu o Sol?

- Sim, vi o sol – confirmou Pace. – Via-o todos os dias.

- Patranhas – disse a múmia, agastada. – Sou mais velho que você e nunca o vi. Nunca alguém que eu tenha conhecido o viu. Onde fica esse paraíso de que fala, que tinha sol e tinha dias, Pace? Nos livros que leu, se calhar.

- É parte do que estou a tentar dizer-vos – disse Pace, calmamente. – Todos os dias o sol nascia e se punha e quase todas as noites aparecia a lua no seu lugar, e todas as noites, havia estrelas no céu. Estrelas aos milhões. Quando ia passear os cães com o meu pai, caminhando no escuro pelos campos que pertenciam à minha família há muitas gerações, ele costumava dizer-me o nome das constelações. A sua favorita era Antlia, a máquina pneumática. Memorizei a sua localização no céu. Memorizei muitas mais, mas Antlia, como era a favorita do meu pai, era também a minha.

- Estrelas! – Worms ergueu as mãos ao tecto.

- O meu pai costumava dizer que o Universo era a única criação perfeita de Deus. Ele não lhe chamava “Deusâ€, preferia o termo “Criadorâ€. Dizia que o Criador tivera muitas ideias, algumas boas, como as constelações, e outras menos boas, a precisarem de melhoramentos, como a Humanidade, por exemplo. Ele não era um filósofo, era um inventor. Discorria inesgotável sobre as descobertas de Papin no campo dos pistões e cilindros e sobre o condensador separado de Watts, mas quando filosofava, nunca ia muito além do superficial. A Humanidade era, para o meu pai, como o motor a vapor. Um prodígio da engenharia a precisar de muito trabalho, um milagre que não prometia grande coisa mas que era, mesmo assim, fascinante e maravilhoso. Portanto, uma ideia que nunca fora realmente cumprida. Como muitas das suas máquinas. Quando eu abandonava por momentos a minha habitual introspecção e lhe perguntava sobre um trambolho qualquer que estivesse escondido debaixo dum oleado, ele respondia que era uma ideia que não tinha ido a lado algum. Perguntei porque não, e ele fez a comparação com um escritor que tinha muitas ideias mas facilmente as trocava por outras melhores. Um escritor, como um inventor, é um Criador, como Deus. Nas palavras do meu pai, era assim. O escritor, como o nosso preferido, Julio Verne, nunca levava até ao fim todas as suas ideias. Não podia. Tinha de seleccionar as que completaria em detrimento de outras, que podiam ser tão boas ou talvez não fossem, mas que por isto ou por aquilo ficariam esquecidas nas páginas inacabadas da sua obra ou até mesmo na forma de pensamentos soltos e muito vagos, tresmalhados na mente do Criador. Fantasmas de histórias, personagens, mundos, coisas, tudo perdido.

– Que imaginação prodigiosa! – Worms aplaudiria se não receasse que as bocas serrilhadas que viviam nas palmas das suas mãos acordassem do torpor que as ligaduras lhes proporcionavam e começassem a morderem-se nas bordas.

- Estas são as minhas memórias, Worms, mas, sim, tem razão em desconfiar delas. – Pace banhou-o de forma estranha com o clarão bifocal dos seus olhos mecânicos. - Eu também não ponho as minhas mãos no fogo por elas.
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Outubro 26, 2009, 11:14:16 »

Memórias de tempos que parecem cada vez mais longínquos! Fantástico!
Bj
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Goretidias

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Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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