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Autor Tópico: Arcadas  (Lida 1467 vezes)
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Djabal
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« em: Setembro 09, 2008, 19:28:37 »

Arcadas

E aí, Italiano? Beleza?  Figura destacada do Largo de São Francisco. Identificava num piscar de olhos quem era estudante cliente oferecendo uma gravata daquele mirífico acervo. Vendia por bom preço artigos copiados à perfeição dos originais europeus. O tecido remanescia do estoque veneziano acumulado pelas viagens na antiga rota da seda. Essa figura simpática e amiga foi durante todo meu tempo lá, a referência.

E o bedel. Multiplex. Exercia durante seu horário, função de mais relevo; revendedor de livros, novos ou usados, conforme o poder aquisitivo de cada aluno. Sabia o livro texto em uso na cadeira. Informando sobre se o professor seguia ou não o texto, para efeito das provas. Fazia cópias de capítulos. Tudo para pronta entrega. No período da tarde, era ascensorista num edifício. Imagem acabada da iniciativa privada.

Eu subia até o segundo andar, um átrio no final do corredor, duas salas, a minha à direita, comportava cem alunos. Uma pequena multidão. Esmaecida ao longo do tempo, acabou restrita aos que sentaram ao meu lado. Interioranos: filhos de Marias, ex-seminaristas, padres, sitiantes, comerciários; da Capital: herdeiros de sírios falidos e ricos, funcionários, corretores, e um italiano legítimo – Pasquale - com um sotaque tão ostensivo quanto seu apreço pelos estudos. Ninguém o entendia direito. A música da língua era outra. Falava italiano usando gramática e sintaxe portuguesas, acrescida por sucessivos e inóspitos “dunqueâ€.

O professor de Direito Romano demonstrou uma didática singular. Ele foi encarregado de nos contar sobre quais escombros do antigo Direito foram montados os pilares do novo cânone. Escombros? Pilares? Prolegômenos? O latim era mais presente que a maioria dos alunos. Logo na primeira semana, o mestre foi colocado em dúvida. O instituto em questão era mesmo Romano ou seria talvez das Ordenações Manuelinas? O mestre parou, pensou e passou a falar até o final da aula no mais fluente dos  latins.

Do meu lado direito, sentou-se Dimas. Mediano, magro, rosto encovado, cabelo cortado muito rente, nariz adunco, sério e objetivo. Vestia-se se excessos. Respondia às questões utilizando seu raciocínio lógico cortante. Interessado nas aulas. Vendedor de artigos de papelaria. Recém-casado.  Uma filhinha de alguns meses.

À esquerda, Luciano, grandão, alto, forte, gordo, um rosto pálido que contrastava muito com o negro dos seus cabelos fartos, revoltos sobre a cabeça - pequena em relação ao corpo.  Filho do dirigente da maior construtora da capital. Vivia num mundo distante, freqüentava as aulas sem regularidade, profundo conhecedor de música, não precisou de nada mais. Era conhecido como Pavarotti.
 
Logo mais adiante, defronte ao palco onde se apresentavam os professores - ora de costas para a classe, ora de costas para o quadro negro - na primeira fila, um colar de cabeças femininas, com cabelos prematuramente azuis e pertencentes ao Instituto Nacional da Previdência Social. Estudavam para aumentar seus rendimentos nas futuras provas e concursos. Uma brigada de recepção das mais distintas e atentas.

O fundão era habitado por uma centúria de rapazes de óculos, cabelos à militar, todos vestidos com abrigos de gabardine cáqui, fechados com zíper, mostrando o colarinho abotoado da camisa branca. Não conversavam com ninguém. Via-os caminhando com passos ensaiados, agitando alguns pavilhões vermelhos ondulantes, numa rua do centro. Gritavam palavras de ordem.

Numa parede lateral, imensas janelas com esquadrias gastas pelo tempo, vidros baços, que o tédio, perícia e imaginação faziam descortinar o  glauco domo da Sé.

No segundo ano. Aula de Direito Penal. Soubemos da existência da carteira da Ordem dos Advogados, para exercício da futura profissão. Dimas, indagou e soube mais: na carteira, os dados do portador e um pequeno resumo da sua vida pregressa. Interessado, pediu exemplos. Ah, se funcionário público ou ex-presidiário, por exemplo.

Durante alguns dias o lugar dele ficou vazio. Voltou diferente. Taciturno. Perguntei se havia algo que eu pudesse fazer. Não, obrigado. Pensando bem, quero vender o meu celular. Quer comprar? Dimas, o que é que há? Fala.

Contou que fora preso, anos antes, por furto de um rádio. Condenado, pagou pelo seu crime. Saiu de lá com um curso para assalto à mão armada. Pós - graduado. Entretanto, optara por constituir família, trabalhar. Depois daquela aula percebeu que jamais conseguiria se livrar daquilo. Estava se preparando para retomar sua profissão de fato.

Conversei com o Pavarotti a respeito. Resolvemos ir até casa do Dimas. Não o encontramos. A esposa nos indicou um bilhar, naquela biboca do Jabaquara, onde ele costumava ficar, até tarde. Um lugar pequeno, encarapitado num barranco, com uma pequena mesa, que exigia do jogador que ficasse de fora - algumas vezes - para poder manejar o taco. Soubemos da sua decisão irrevogável de assalto a banco. Estava tão resoluto quanto em sala de aula respondendo às perguntas dos professores.

Dias depois, a notícia no jornal: tentativa de assalto frustrada, a morte bem na porta do banco. Procurei sua mulher para oferecer ajuda. Não estava mais lá. Desaparecera.

Contei da minha impotência ao Pavarotti. Corremos riscos o tempo todo, disse. E citou: “Viver é perigosoâ€. Freqüentava cinemas pornôs no centro. Na penumbra, mantinha diversas relações sexuais. Não se importando com nada, exceto estar feliz. Uma vida de sonhos que durava os noventa minutos da sessão, duas ou três vezes por semana.

Convidou-me para assistir à orquestra Filarmônica de Berlim no sábado, no Museu Metropolitano de Nova York.  Mas hoje é quinta, não há tempo. Não se preocupe. Mas não tenho grana para isso. Deixa disso, não se preocupe. Mas tenho que trabalhar amanhã. Ele desistiu. E foi.

Tempos depois, soube do Luciano por um amigo. Finou-se, falência múltipla de órgãos. Durante sua agonia, a mãe lhe passava a comida pelo vão da porta do quarto, no rés do chão. Seus bens foram doados, por testamento, para uma associação que presta ajuda à classe média.

Nunca mais freqüentei aulas de Direito Penal. Obtive a carteira. Jamais advoguei. Ingressei no mestrado e não terminei. Amo música.





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Queria escrever à velocidade com que penso.


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« Responder #1 em: Setembro 09, 2008, 19:45:13 »

As aulas, um lugar tão bom como qualquer outro para histórias de vida incríveis se cruzarem. Brilhante conto Djabal, como sempre.

Cheers
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Laura
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« Responder #2 em: Setembro 09, 2008, 19:58:40 »

Um excelente conto, de vidas ceifadas, que se cruzaram por instantes...
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Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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