Tim_booth
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« em: Novembro 15, 2008, 17:53:06 » |
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Quem é este velho que o espelho me está a devolver? Mal me consigo descobrir por debaixo desta cara. Os meus olhos estão escondidos por debaixo da pele caÃda. É uma pena, na verdade. Sempre gostei muito dos meus olhos. E agora mal os consigo ver. E cabelo. Dantes tinha cabelo. Preto. Grosso. Forte. O espelho é o pior inimigo de um homem vaidoso. Eu é que já não tenho idade para ser vaidoso. Mal consigo sair da cama, não aguento mais que uns quantos minutos fora do colchão. Mesmo que aguentasse, não sei se queria. O mundo não foi feito para homens velhos. Pior do que isso ainda, os homens velhos não foram feitos para o mundo. São como aquelas jarras feias que as pessoas têm em casa, sem saber bem porquê, e que não têm coragem de deitar fora. Se os velhos fossem bonitos eram decoração do mundo, como a beleza há muito os abandonou, me abandonou, somos só estorvo para quase todos, honrosa excepção para aqueles que ainda conseguem fazer dinheiro à s nossas custas, como esta casa de morte onde estou agora. Desde que cá cheguei que já morreram sete internos. Isto em menos de sete semanas. Já pensei em fazer apostas com os outros que estão emprisionados comigo sobre quem vai ser o próximo mas tenho medo que alguém ainda consiga fazer dinheiro à s custas do meu caixão. Ponto positivo: ainda tenho um quarto só para mim, uma casa de banho só para mim, o uso das pernas e uma cabeça nÃtida; ponto negativo: a última vez que senti alguma dignidade foi quando a enfermeira mais nova me tratou por senhor, claro que atenuado pelo facto de ela me estar a levantar depois de eu ter caÃdo da sanita, ainda com bocados de merda agarrados ao cú. Estou velho. Muito velho. Nunca quis envelhecer, nunca vi nada de belo nisso como todos aqueles poetas e escritores que escrevem sobre a final decadência da vida vêem. É como se fosse comida estragada mantida no frigorÃfico muito tempo depois da data de validade. Já não serve para nada, já ninguém a vai usar, mas ainda não foi deitada para o lixo. Acho que preferia ser deitado para o lixo. Olha para mim, sou um velho sem força, sem serviço, sem vontade. Quem me dera ser como aqueles que aparecem na televisão e que vão saltar de pára-quedas, ou mergulhar com os tubarões, ou que casam com miúdas de vinte anos. Mas não sou. Sou um velho velho, que está cansado de ser velho e cansado de ser. Retiro o que disse. Não quero morrer já. Não que goste demais disto, que não gosto. Mas tenho medo da morte. Medo. Houve tempo em que não tinha medo de nada. A não ser, talvez, de aranhas, não era bem medo, mais nojo. Mas agora parece que tudo me mete medo. Tenho medo de sair do lar, tenho medo de comer coisas que não estou habituado, tenho medo de andar mais que dois metros, tenho medo de que os meus filhos deixem de aparecer para me visitar. Acima de tudo, tenho medo de morrer. Nenhum homem devia ter de enfrentar a sua mortalidade. A morte devia ser um fenómeno desconhecido para a humanidade. Pergunto-me tantas vezes o que tinha sido diferente na minha vida se a morte não fosse a única certeza. E agora não há dia que passe sem obcecar com o que está para vir. Não há minuto que passe sem que me pergunte se ainda vou respirar no próximo. O que me espera a seguir? Engraçado, toda a minha vida fui um homem religioso, crente, temente a Deus e fiel à igreja romana, mas agora que o momento da verdade parece estar cada vez mais próximo, mais a minha fé parece abalada. Não sei se existe céu. Não sei se existe alguma coisa depois do último bater cardÃaco. Talvez não exista mesmo mais nada. Secalhar a existência é isto e nada mais. Nada daquilo que fiz aqui importa agora. Ou secalhar vamos todos ser julgados pelas escolhas que fizemos em vida. O que sei, já dizia a minha avó, por esta idade, quando se findou também, o que sei é que a morte é certa e não falha. E eu tenho medo dela. Da morte, claro.
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Como não podia deixar de ser, continua...
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