- Faz tudo o que ela quiser, mas nunca tires o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão.
- António Lobo Antunes, O manual dos Inquisidores
Eis que chega Lobo Antunes com
O manual dos Inquisidores, obra de 1996, para nos deixar boquiabertos com uma quantidade de vozes inimaginável para um enredo tão simples. O livro não é mais que uma sucessão de entrevistas (relatos ou comentários, como nele são referidos) a quase todas as pessoas que fizeram ou fazem parte do universo do antigo Ministro de Salazar, Francisco. Temos o filho, a filha ilegÃtima, o caseiro, a filha do caseiro, a cozinheira (mãe da filha ilegÃtima), a ex-mulher, a governanta, a mulher que é paga para fingir ser a ex-mulher do ministro, a mãe da mulher que é paga para fingir ser a ex-mulher do ministro, o motorista, a ex-mulher do filho, o tio da ex-mulher do filho, a madrinha da filha ilegÃtima e muito provavelmente mais de que aqui me esqueci de referir.
Pode-se, portanto, dizer que o livro trata do declÃnio da vida do ministro durante a pré e pós revolução de 25 de Abril de 1974. É, como li algures, a revolução vista pelos não revolucionários. É portanto, e à primeira vista, um livro polÃtico. Mas é muito mais do que isso.
É delicioso ler Lobo Antunes. DifÃcil, é certo, mas absolutamente delicioso. A crÃtica mordaz sempre presente, a constante ironia e humor, a emoção que se esconde tão bem atrás das fachadas dos personagens, tudo isso contribui para uma experiência de leitura que ainda não fui capaz de encontrar em mais nenhum autor.
Lobo Antunes é muitas vezes acusado de construir histórias frias, com personagens pouco emotivas ou desligadas do mundo. Eu não podia estar mais em desacordo: aquilo que se vê, tendo por base este
Manual dos Inquisidores, porque não é preciso ir mais longe, é precisamente o contrário: um conjunto de seres humanos, seres humanos verdadeiros, distantes daqueles que vemos no cinema, cujas vidas foram para sempre alteradas pela existência de um homem e por um acontecimento que mudou o paÃs. Todos estes personagens ligam-se ao ministro de alguma maneira, todos perderam com a queda do regime. Alguns foram capazes de refazer a vida, outros de continuar a vida medÃocre que já levavam, mas outros ainda perderam para sempre toda a dignidade. É precisamente isso que mais marca neste livro: a lenta perca de dignidade que alguns personagens sofrem, em especial o ministro Francisco, que já antes da revolução se via a sombra do que tinha sido em tempos um homem poderoso e temido no paÃs.
Há personagens para todos os gostos, mas aqueles que mais nos marcam são os mais patéticos: o ministro e o seu filho João. O ministro que se vê subitamente sem a mulher que sempre pensou que ficaria com ele para sempre, que se rebaixa ao ponto de galantear - aqui deve ler-se contratar - uma mulher parecida com a sua ex-esposa para fingir que o é, que depois da revolução, num acto de loucura, expulsa todos os empregados da sua quinta de Palmela e que acaba os seus dias num lar onde é tratado como nunca julgou, despido de toda a dignidade que ele mesmo foi despindo ao longo da sua vida. O seu filho João que é a apatia em pessoa, que foi ludibriado pela ex-mulher e perdeu a quinta do pai em Palmela, que se vê envergonhado frente aos seus próprios filhos em tribunal, durante o divórcio, vendo-se obrigado a usar um cordão a fazer de cinto, tal a pobreza em que a mulher o deixou.
Estes não são mais do que exemplos daquilo que podemos encontrar dentro do
O manual dos Inquisidores. Este é um livro, não, um manual daqueles que estavam do outro lado da barricada. As histórias são simples, uma herança familiar que se perde, casamentos e divórcios e pouco mais, mas estão carregadas de humanidade, ridicularidade até - mas qual é o homem que não tem uma ponta de ridÃculo?
Chegamos mesmo a sentir simpatia, isso mesmo, simpatia, por alguns dos personagens mais detestáveis - é impossÃvel ficar indiferente à carência afectiva do ministro (â€Tu gostas de mim, não gostas Isabel?â€, constante pergunta do ministro à sua mulher contratada) é impossÃvel não ligarmos à vida sem sal da filha ilegÃtima cuja maior aspiração era poder ter alguém com quem ir ao cinema ao sábado à noite, é impossÃvel não termos pena da figura patética do homem que perde tudo para a mulher sem razão para isso.
Este é acima de tudo um livro verdadeiramente humano. Olhando para lá da revolução e do regime, pano de fundo durante toda a história, encontramos pessoas. Encontramos vidas em tudo semelhantes à nossa e, no entanto, tremendamente afastadas pelo tempo, pelo espaço e pela tristeza.
Escrito originalmente aqui.